O novo álbum de Samuel Úria esteve “confinado” e foi apresentado ao público no dia em que o cantautor, um dos mais aclamados da sua geração, fez 41 anos.

Com lançamento inicialmente previsto para abril, “Canções do Pós-Guerra” chegou a 18 de setembro às lojas, albergando despojos temáticos e sentimentais de variada ordem.

Em conversa com o JPN, o músico falou sobre a atualidade das canções, a importância da intervenção artística e da imprevisibilidade do futuro, numa arte já de si muito “imprevísivel”.

“Cabisbaixo”, não está. Com um disco mais interventivo e inconformado, Úria fala de esperança e concentra-se no que consegue controlar: “Sei que cumpri a minha parte e pelo menos os concertos que sei que vou ter, que não são os que seriam de esperar numa altura de lançamento de um disco, são os concertos em que me estou a focar.”

O primeiro é já esta terça-feira à noite, em Lisboa. Amanhã, dia 7, é a vez da Casa da Música receber o artista, no Porto.

JPN – O novo álbum que lançou intitula-se “Canções do pós-Guerra”. Porquê este título? Surge de uma guerra interior?

SU – A escolha do título tem que ver com as várias possibilidades que o ‘pós-guerra’ me oferecia. Assim que eu comecei a escrever as primeiras canções, projetei-lhes logo o título. Percebi que havia alguma coisa que as unia. Não sendo propriamente os mesmos motivos e não sendo dependentes dos mesmos temas, havia coisas que uniam essas primeiras canções e podiam ser relacionadas com a temática do pós-guerra – que tanto pode ser um momento de reflexão como um momento de tentar esquecer tudo o que se passou. A possibilidade de haver vários universos, como a esperança, o rescaldo, a necessidade de vida, o luto… fizeram-me perceber que conseguia escrever um disco com um título que podia albergar várias temáticas e vários sentimentos, e não fugir dessa coesão que o título sugeria.

JPN – Passaram-se quatro anos desde o lançamento do último disco, “Carga de Ombro”. Este  apresenta-se muito mais reivindicativo que o anterior. Para si, fundamentalmente, o que é que distingue ambos?

SU – Eu diria que este álbum, de alguma maneira, é fruto de quatro anos a tocar o mesmo disco. Eu toquei durante quatro anos o “Carga de Ombro” e não foi por eu querer insistir. Foi um disco que teve um tempo de vida maior do que eu esperava e o tempo de vida é determinado pelo público. Eu ia tocar a sítios onde já tinha tocado e tinha pessoas novas a assistir e isso fez com que o disco tivesse uma duração mais extensa do que o que é normal.

Então, quando paro para escrever este, para não ficar demasiado refém do que tinha tido algum sucesso anteriormente, eu quis fazer algo que fosse diferente. É verdade que tem trejeitos absolutamente meus, isso eu reconheço e acho que são reconhecíveis, mas alguma da forma com que eu parto para trabalhar as canções é radicalmente e propositadamente diferente.

Eu queria que agora a marca fosse diferente. Correndo o risco de defraudar quem tinha gostado muito do anterior e não está a reencontrar algumas características que gostou, mas eu queria mesmo que a marca fosse diferente. Não necessariamente para novos públicos, mas para que o público que já tinha conquistado conhecesse outra faceta da minha escrita de canções.

JPN – Um dos singles de lançamento do disco foi “O Muro”. Porquê esta canção para apresentar o novo álbum?

SU – Para mim foi uma surpresa a escolha de ”O Muro” [para segundo single], porque eu não faço a escolha sozinho e era uma canção em que me revia muito. Sendo uma canção tão pessoal, eu à partida não esperava que alguém me propusesse que fosse partilhada como avanço do disco. Mas fazia sentido, sendo este um disco que não é sempre muito enérgico, contém também baladas. Queria, depois do “Fica aquém”, que o segundo single contemplasse uma faceta do disco mais cândida, mais branda, mais pacífica. “O Muro” parecia a canção ideal. Por um lado, ampliava o espectro de amostra do disco e do seu todo e, por outro lado, é uma canção onde me revejo absolutamente – fala sobre o meu processo de escrita, sobre a minha escrita em momentos anteriores. É uma canção muito pessoal, mas é uma canção que me faz querer partilhar a intimidade em vez de esconder. Por isso, pareceu-me uma canção boa para avançar.

JPN – O filme feito pela Joana Linda, que inclui vídeos para todas as canções do disco, oferece um acompanhamento visual que vai muito além do tradicional videoclipe. Porque é que era pertinente criar um filme com as nove canções deste disco?

SU – Havia mesmo essa vontade de querer que as pessoas percecionassem o disco como uma espécie de viagem. E se o puderem fazer enquanto veem uma viagem literal, um passeio, isso cumpriria o objetivo de haver esse tal acompanhamento visual para as canções.

Depois, na minha cabeça, as canções são sempre bastante visuais. Embora os vídeos não sejam interpretações daquilo que está a ser dito na música, porque eu não estou a interpretar os temas das letras, há quase uma jornada que se faz e há essa parte visível de uma jornada a ser feita enquanto a música se desenvolve. Isto também ajuda a perceber que o alinhamento do disco é sequencial.

Por outro lado, tendo em conta que o disco estava para sair em abril e não saiu porque ficou, tal como nós, resguardado, este passeio a pé é também uma celebração do desconfinamento – não só nosso como do disco. Então, fui para a rua, que foi aquilo que não pude fazer, e as canções foram também para a rua, que foi aquilo que elas também não puderam fazer no tempo em que estava determinado ter sido feito.

JPN – Podemos assumir que a canção que abre o álbum, “Aos pós”, contrasta um pouco com a que o fecha, “Menina”. O inconformismo continua presente, mas a revolta notória da primeira música, transforma-se em esperança na última. A frase “Com o som de uma espera a ter fim” encerra o álbum. Pode-se entender o fim desta longa espera como um despertar coletivo?

SU – De facto, eu quis que esses dois polos estivessem nas pontas dos discos, um bocado para dar essa sensação. As coisas são intempestivas, mas depois também há um despertar que temos de aguardar com alguma serenidade e eu acabo com uma canção que sendo uma canção de embalar, que fala de um acordar literal, pode ser entendida como um acordar mais simbólico.

Eu gosto sempre de ter uma mensagem de esperança nos meus discos, mesmo quando eles parecem mais sombrios e desesperados, por isso é que continuo a pensar mais em discos do que em canções. Eu canto muito as canções quando estou a fazê-las, mas penso-as em grupo para que a mensagem que eu quero partilhar não tenha ficado refém de uma só canção.

Nesse sentido, posso ir tanto à parte reivindicativa, mais desanimada, como posso ir à parte mais esperançosa e os discos continuam a oferecer-me isso.

Eu sei que o formato “álbum” já está um bocado ultrapassado em termos de consumo, as pessoas ouvem músicas de uma forma mais avulsa, até porque as plataformas digitais favorecem isso, mas eu continuo a pensar em canções em conjunto e, por um lado, tenho quase a consciência tranquila de achar que por pensar as canções em conjunto isso não vai desprestigiar a realidade da canção. Vai até reforçar. Nesse sentido escrever discos tem essa vantagem: não ficarmos encafuados numa só ideia e gostava que isso fosse também uma das coisas visíveis da maneira como eu faço canções. Felizmente tenho tido um público com uma generosidade extrema que acho que consegue seguir esse fio à meada, pelo menos aquele público que sinto que de alguma forma tem sido mais devoto nos últimos tempos. Tem essa generosidade de querer compreender não só as canções, mas também a sucessão das canções.

JPN – É fácil relacionar o teor inconformado e interventivo das canções com a atualidade conturbada em que vivemos. Quão importante é ser artisticamente interventivo nos dias que correm?

SU – Eu acho que não há volta a dar. Não estou aqui a pôr pressão aos meus colegas que escrevem canções, até porque acho que um dos temas mais explorados são as histórias de amor, o lado romântico continua a dominar muito a escrita de canções. Eu próprio não o afasto completamente, mas se existe algum tipo de intervenção cultural que nós tenhamos, uma intervenção artística, acho que chegou uma altura em que nós percebemos que se temos esse tipo de intervenção vamos fazer parte do tecido da própria consciência coletiva de uma nação. Mesmo que haja muita gente que deteste a nossa música, temos uma responsabilidade para com as pessoas que gostam e nesse sentido eu não sou, mesmo que queira, impermeável àquilo que se está a passar à minha volta. Se escrevo canções com uma dose necessária de sinceridade, porque a sinceridade ajuda-me na criatividade, eu sou incapaz de afastar alguns dos lamentos e receios e alguma da visão sobre aquilo que se passa à minha volta. Deixando que isso transpareça para a minha música, ela acaba por se tornar, indevidamente ou não, interventiva.

Quando damos por nós a defender causas que achamos de muito valor, por um lado depois, também acabamos por querer chamar os outros para essa luta. Os músicos, em alturas de guerra como estão a acontecer agora, têm de formar algum tipo de resistência. Pelo menos aqueles músicos que eu conheço e que acham que as mesmas causas devem ser defendidas e proclamadas. Temos um veículo para a proclamação, porque não usá-lo?

Samuel Úria | Foto: Joana Linda

JPN – O álbum foi desenvolvido em 2019. Houve letras ou canções do álbum que agora com o estado do mundo ganharam um novo significado para si?

SU – Sim. Isso acaba por acontecer sempre porque quando eu escrevo canções, eu gravo-as e quase que me esqueço delas. Até que elas saiam, para mim, é quase como se não existissem porque depois ganham sempre uma vida nova com as reações e interpretações do público. É só nessa altura que eu volto a confrontar-me com as canções e elas acabam sempre por ganhar um significado diferente, mesmo que exista uma intencionalidade muito grande quando eu as escrevo.

A minha perceção das canções torna-se diferente quando elas chegam ao público e quando se tornam esse organismo vivo, que existe numa relação entre quem escreve e quem ouve. Nesse sentido, isso acontece sempre. Nesta altura, com o mundo reformulado, com toda esta incerteza, isso aconteceu ainda mais. Desta vez, ainda antes das canções chegarem ao público, eu comecei a rever coisas que tinha escrito, não de forma profética, mas coisas que tinha escrito com alguns receios a serem confirmados, às vezes, das piores maneiras.

Então, já havia ecos das canções que eu tinha escrito antes de elas terem chegado às pessoas. Já começava a sentir uma espécie de feedback da sociedade a dizer-me que os temas sensíveis sobre os quais eu me tinha proposto a escrever, eram sensíveis ao ponto de se confirmarem de uma forma ou de outra. E foram confirmados pelo alvoroço com que ninguém contava que surgisse, de alguma forma, e surgiu num contexto pandémico.

JPN – Com um álbum previsto ser lançado em abril, tinha o verão para o mostrar. Como tem sido a vida com atuações moldadas a esta nova realidade? Têm sido tempos difíceis?

SU – Eu acho que a maior dificuldade tem que ver com a incerteza do que vai acontecer daqui para a frente, porque nós estamos sempre à espera que as coisas regressem à velha normalidade e estamos a compreender que a velha normalidade, se calhar, é uma coisa que nunca mais vai existir. Vai permanecer velha, não se vai renovar.

E, então, esta incerteza é que está a pautar as previsões todas ou a falta delas. A vida das canções é sempre muito subjetiva – perceber como é que vamos viver através do que as pessoas gostam ou não gostam. É uma profissão que depende de gostos, não só de eficiência. Isso é sempre imprevisível, mas neste momento ainda se torna mais.

Não sei, também talvez fruto de algum otimismo da minha parte, não é pensar que as coisas vão melhorar repentinamente, mas pelo menos não estou cabisbaixo. Sei que cumpri a minha parte e pelo menos os concertos que sei que vou ter, que não são os que seriam de esperar numa altura de lançamento de um disco, são os concertos em que me estou a focar. Eu não me consigo focar em incertezas, porque não as domino.

JPN – No próximo dia 7 de outubro, vai apresentar o novo álbum na Casa da Música, no Porto. Que espetáculo está a ser preparado? O que é que nos pode revelar?

SU – Eu quis que não houvesse nenhum esmorecimento face às condições, porque há normas de segurança a cumprir. Sei que em palco vamos ter de ter algum tipo de distância física que não era habitual, temos de ter a responsabilidade de não andar uns em cima dos outros obviamente. Mas, por outro lado, eu não quis mudar a pujança em termos de número de pessoas em palco. Eu vou levar mesmo muita gente para o palco, vamos ser por volta de vinte pessoas, porque quero mesmo celebrar um disco que esteve contido. Quero celebrá-lo com o máximo de vozes e instrumentos e quero dar um espetáculo que seja, não inconsciente do que se está a passar, mas consciente que a celebração tem que ser feita a dobrar, tem de ser altissonante no dobro para podermos empurrar o que quer que seja para a frente.

Artigo editado por Filipa Silva