A 12 de março de 2011 uma geração insatisfeita saía às ruas para se manifestar contra a precariedade, a instabilidade laboral e os baixos salários. O movimento ficou conhecido como “Geração à Rasca” e foi responsável por levar para as ruas cerca de 300 mil protestantes. O JPN recorda o dia e o que desse contexto se mantém atual com a ajuda de três figuras-chave da manifestação: Paula Gil e Alexandre de Sousa Carvalho, dois dos organizadores, e Jel, um dos Homens da Luta.

Era o ano de 2011. Os Deolinda estreavam nos palcos dos coliseus de Lisboa e do Porto o seu mais recente tema. Um tema que em quatro simples versos condensava o sentimento de uma geração – jovem, qualificada e precária. Rezava assim “Parva que sou”, a canção que se fez hino.

Alexandre de Sousa Carvalho, António Frazão, João Labrincha e Paula Gil eram estudantes de Relações Internacionais e marcaram presença num desses concertos. Tinham ainda pouca experiência profissional, mas já estavam familiarizados com o que era esse “sentimento de beco sem saída” que grande parte dos jovens sentia.

 A reação do público às palavras cantadas por Ana Bacalhau constituiu para eles o “gatilho” que faltava. “Percebemos que havia aqui uma consciência da comunidade perante a situação, perante a realidade, que era bastante consensual”, conta Alexandre, ao JPN, dez anos depois.

O próximo passo foi criar uma página no Facebook que batizaram de “Geração à Rasca“, adaptando ao contexto de então a expressão “geração rasca”, usada em 1994 por Vicente Jorge Silva, num editorial do “Público”, para classificar os estudantes que se manifestavam na altura contra provas globais e propinas. A ideia da página de Facebook era chegar a mais gente e falar sobre o assunto. Assim aconteceu, mas as conversas incentivaram o grupo de jovens a ir mais longe: “As pessoas quando entravam em conversa connosco diziam-nos sempre: ‘importante era uma manifestação para ser visível na rua, para as pessoas saberem que nós somos muitos’. E acho que esse foi o grande ponto de viragem do grupo para uma manifestação”, relembra Paula Gil. 

Estavam no mês de fevereiro e organizaram para março aquele que seria o Movimento da “Geração à Rasca” assumidamente “apartidário, laico e pacífico”. O manifesto do protesto incitava à participação de todos os “desempregados, ‘quinhentoseuristas’ e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal”.

“Isto não parece uma manifestação, isto parece uma ocupação!”

Os dias que antecederam a manifestação ficaram marcados por um grande grau de incerteza e um número ainda maior de dúvidas. “Vai aparecer gente? Não vai aparecer gente? Vai haver porrada? Não vai haver porrada?”, foram algumas das questões que, na altura, Jel – dos Homens da Luta – colocou a si próprio.

Ninguém sabia muito bem o que iria acontecer, nem com o que podiam contar. Este tipo de mobilização não era conhecida em Portugal – e, por isso, não havia um “termo de comparação com o que podia acontecer”, recorda Alexandre Carvalho, que confessou ao JPN ter-se mantido como o mais “pessimista” dos organizadores: “lembro-me perfeitamente de, na véspera da manifestação, achar que se estivessem três a cinco mil pessoas, já seria uma grande vitória”. A verdade, diz, é que eram apenas “quatro miúdos sem ligações a estruturas” que “decidiram agir” e que queriam “organizar aquilo de forma inorgânica”.

Houve quem tenha até tentado avisá-los, por experiência própria, para que não estivessem à espera de ver a sua manifestação impor-se na agenda mediática por ter sido organizada com tão pouco tempo de antecedência. Mas isso provou-se errado: estiveram na agenda durante as cinco semanas entre o anúncio e o dia em que saíram para as ruas e todos os dias eram chamados para entrevistas: “eles [jornalistas] queriam a nossa opinião sobre absolutamente tudo”, conta Paula. “Foi um tiro no escuro, mas bastante certeiro”, remata Alexandre.

Os mais de mil metros de extensão da Avenida da Liberdade foram os escolhidos pelos organizadores para serem percorridos pela mobilização na cidade de Lisboa. A dimensão do local tornou a escolha arriscada, mas encher a Avenida acabou por não ser um problema. Paula Gil, na altura com 26 anos,  ainda se arrepia quando recorda como as ruas se foram enchendo de gente.

A melhor expectativa dos organizadores acabou por ser largamente ultrapassada. Só na cidade de Lisboa, estima-se que tenham estado presentes cerca de 200 mil pessoas. Alexandre de Sousa Carvalho relembra o momento em que percorria a avenida em direção à Praça dos Restauradores: “a manifestação estava quase a arrancar e ao meu lado está alguém que me diz: ‘isto não parece uma manifestação, isto parece uma ocupação!’”.

A manifestação reuniu cerca de 300 mil pessoas por todo o país. No Porto, terão sido cerca de 80 mil.

Desde muito cedo que o grupo de jovens descentralizaram a manifestação do ponto de vista organizativo. Criaram o manifesto e disseram às pessoas que “se quisessem organizar-se nas suas próprias localidades ou até mesmo no estrangeiro, eram livres de o fazer.” A manifestação saiu à rua num total de 11 cidades portuguesas, com o Porto a ser responsável pela presença de 80 mil protestantes. Houve também manifestações mais pequenas em Barcelona, Londres, Berlim, Haia, Madrid, Liubliana, Luxemburgo, Bruxelas, Maputo, Nova Iorque, Copenhaga e Estugarda em frente às embaixadas de Portugal.

Os Homens que deram megafone à Luta 

Os Homens da Luta viviam em 2011 o apogeu de uma carreira que começara cinco anos antes. A música vencedora do festival da canção daquele ano –  “Luta é Alegria” – e as personagens de Jel e de Falâncio encarnavam, também eles, o descontentamento português da época.

Foi neste sentido que a dupla decidiu participar no protesto da “Geração à Rasca” e convidar, em plena final do Festival da Canção, o público juntar-se à manifestação. O convite, viu-se, foi bem recebido e cinco dias depois, Jel e Falâncio lá estavam no meio das cerca de 200 mil pessoas que em Lisboa reivindicavam um futuro melhor.

Jel, dos Homens da Luta, na manifestação em Lisboa. Foto: Facebook Paula Gil/ D.R.

“A premissa [dos Homens da Luta] era ser uma banda de música de intervenção como se fazia em 1975. Era a génese dos personagens ou aquilo que eles significavam – eram um bocadinho aqueles revolucionários do 25 de Abril”, começa por explicar Jel – agora Tio Jel – ao JPN. O dia em que o povo voltou a sair à rua fez a sátira colar como nunca à realidade. De repente, “não eram só um número humoristico ou musical, já era um número de contestação”, frisa Jel, Nuno Duarte de seu nome.

E os Homens da Luta não foram sozinhos. Rui Veloso foi um dos artistas convidados pelos vencedores do Festival da Canção. No local, aos microfones da TVI, o músico do Porto explicava que o que interessava ali “não é a música deles, mas sim a intervenção”, atribuindo a designação de “humor terrorista” ao que os Homens da Luta estavam a fazer.

Fernando Tordo, outro dos artistas presentes, justificava na mesma reportagem por que razão ia ao encontro da opinião de Jel: “a ‘Geração à rasca’ não são apenas os jovens, somos todos nós”. Dez anos passados, Nuno Duarte admite “um envolvimento muito grande naquela manifestação” e que “guardará aqueles momentos na memória”.

Os Homens da Luta atuaram em cima de uma camioneta durante a manifestação. Outros artistas foram convidados a subir. Foto: Paula Gil/ D.R.

“Estávamos ali numa camioneta a atuar para centenas de milhares pessoas… nós vivíamos assim numa espécie de bolha”, que o banho de multidão veio abalar.

Os Homens da Luta terminaram em 2013, mas a marca da dupla de humoristas e músicos de intervenção ficou vincada na história da manifestação. Quanto ao futuro, sobre se a sua música voltaria a fazer sentido num protesto similar, Jel admite: “estou curioso, vou acompanhando de fora”.

O país que nunca deixou de estar “à rasca”

Naquele 12 de março de 2011, deu-se voz ao descontentamento de uma geração que via o seu futuro posto em causa por razões económicas e sociais. A precariedade “é um tema estruturante da sociedade portuguesa”, comenta Alexandre de Sousa Carvalho ao JPN, para recordar um dos objetivos do movimento: “conseguir colocar a precariedade no centro do debate público”.

Este mediatismo aliado a um sentimento “de insatisfação” e a uma “imagem do Governo muito deteriorada” – o Executivo, liderado por José Sócrates, cairia a 23 de março, desgastado pelo chumbo de mais um Programa de Estabilidade e Crescimento – esteve, na opinião de Jel, na origem da adesão que a manifestação teve. O antigo membro dos Homens da Luta refere um “crescendo” deste sentimento, que fez com que esta fosse “uma manifestação que depois, nos anos a seguir, ganhasse raiz. “Foi um género de um tiro de partida para anos em que houve muita contestação – sobretudo durante o governo de Passos Coelho e de Paulo Portas [que sucederia ao de José Sócrates]”, conta. A emigração que se viu naquela altura, e que nos anos da “troika’ bateria recordes em Portugal, “fez parte do drama que aquela geração passou”.

Drama esse que agora, trocando a emigração pela pandemia que o país e o mundo atravessam, continua a assolar uma nova geração. Dez anos passados, a precariedade continua a deixar “à rasca” boa parte da população. Para Paula Gil, “nunca saímos da primeira crise” e, como tal, não se pode falar de uma segunda. Para a organizadora do movimento “fala-se muito de uma melhoria económica do país, mas essa melhoria não tem semelhança na melhoria dos direitos dos trabalhadores”.

Em alguns aspetos “até se possa estar pior hoje do que há 10 anos”, diz Paula Gil, referindo empresas que empregam “colaboradores, não trabalhadores, que não têm direitos nem proteção”. A ativista faz alusão à desregulação do mercado de trabalho, algo que contribuiu, na sua opinião, para a falta de proteção dos trabalhadores durante o período de pandemia: “estamos mais desregulados até do que estávamos antes”.

Alexandre de Sousa Carvalho lamenta ver “que a realidade que eles [estudantes] vão encontrar quando entrarem no mercado de trabalho não vai ser assim tão diferente da que nós encontramos há dez anos”. Neste sentido, torna-se evidente para o agora professor na licenciatura que há dez anos estava a frequentar, a necessidade de haver “como houve há dez anos, um grupo de miúdos que encontre o momento certo de atuação”. Com o país em confinamento e o mundo substancialmente pausado, Alexandre acredita que com o término desta situação “possam vir a surgir movimentos idênticos” e menciona até um grupo que lhe fez lembrar o dele – a Brigada Estudantil.

A precariedade continua a ser “uma barreira que precisa de ser ultrapassada”, mas que agora foi colocada numa geração com outras bandeiras como “a identidade de género, as habitações para estudantes ou até mesmo a saúde”, dizem Alexandre e Jel. Fica só a faltar um grupo de “malucos”, brinca Alexandre, que saibam “reconhecer o momento certo de atuação” e que se “lancem para a frente para fazer qualquer coisa”, completou Paula Gil. 

Artigo editado por Filipa Silva