Às 3 da manha do dia 23 de fevereiro de 1987, à mesma hora que o Radio Clube Português transmitiu "Grândola" a 25 de Abril de 1974, José Afonso perdeu a luta que travava há mais de cinco anos com a Esclerose Lateral Amiotrófica. Recorde a vida do homem e como foi noticiada a sua morte.

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, popularmente conhecido como Zeca Afonso, nasceu a 2 de agosto de 1929 em Aveiro. Filho de um magistrado e de uma professora, dividiu a infância entre Portugal, Moçambique e Angola. Cumpriu o Ensino Básico em Belmonte e o Liceu em Coimbra junto de uma tia. Ainda “bicho”, começa a cantar no Orfeão Académico em Coimbra.

Em finais da década de 1950, casa-se pela primeira vez. Da união com Amália nascem dois frutos. É também nessa altura que inicia uma desastrosa carreira como professor do ensino secundário, em Mangualde.

É no Algarve, onde lecionou em quatro cidades, que conheceu a sua companheira do resto da vida, Zélia. Tal como no primeiro casamento, Zeca teve um filho e uma filha, a última a quem dedica a canção “Maria, Nascida num monte, À beira da estrada”.

Entre 1964 e 67, foi professor num centro associativo de negros em Lourenço Marques (agora Maputo), do qual foi expulso. Problemas coloniais levam Zeca a abandonar Moçambique e regressar à metrópole, mais precisamente, a Setúbal. É nessa cidade que é banido do ensino oficial e passa só a lecionar explicações. Até lá, gravou sete singles (disco de sete polegadas de 45 rotações por minuto, com uma canção em cada lado) a partir de 1958 e um disco de longa-duração em 1967 (“Baladas e Canções”).

A partir de 68 edita mais seis LP. Por essa altura começa a atuar em sociedades recreativas, círculos culturais e sindicatos. É preso pela PIDE/DGS várias vezes e torna-se alvo da censura.

Em 1969, 70 e 71 recebe o prémio de “melhor disco” da Casa da Imprensa e em 1970 e 73 o de “melhor intérprete”. A entrega deste último prémio ocorre a 28 de março de 1974, numa interpretação com a presença de agentes da “polícia do estado” na plateia que o forçam a cantar apenas duas canções: “Milho Verde” e “Grândola, Vila Morena”. A interpretação da última foi fulcral na decisão do Movimento das Forças Armadas de a usar como segunda senha naquilo que acabou por ser o Golpe de Estado ocorrido a 25 de Abril do mesmo ano.

Zeca Afonso torna-se assim, nacionalmente conhecido e ícone dessa revolução. Participa em vários espetáculos para todo o tipo de organizações e partidos esquerdistas. Apoia as duas candidaturas de Otelo Saraiva de Carvalho em 1976 e 1980 e de Maria de Lurdes Pintassilgo em 1986 para a Presidência da República.

No verão de 1981, surgem os primeiros sintomas da doença que haveria de o vitimar: Esclerose Lateral Amiotrófica. Em novembro desse ano, dá quatro concertos em Paris.

A sua luta contra a doença comoveu o mundo. Em 1983, fez a última aparição em público, num memorável concerto no Coliseu de Lisboa, a 29 de janeiro. O espetáculo foi, um mês depois,  exibido na RTP 1, no espaço “Superestrelas” (conforme mostra a grelha de programação do canal publicada pela “TV Guia”)  e foi editado em disco duplo – “Ao Vivo no Coliseu” -, que chega ao primeiro lugar de vendas em abril de 1983.

Em 1985, foi editado o 15.º e último álbum, “Galinhas do Mato”. A doença impossibilita-o de cantar em boa parte das canções, que acabaram por ser interpretadas vocalmente por outros músicos, como Luís Represas, Janita Salomé ou José Mário Branco.

Às 3 da manha do dia 23 de fevereiro de 1987, à mesma hora que o Radio Clube Português transmitiu “Grândola” a 25 de Abril de 1974, José Afonso perdeu a luta que travava há mais de cinco anos. Morre um dia depois a Andy Warhol. Tinha 57 anos.

Como foi noticiada a morte de Zeca Afonso

Na imprensa, a notícia chegou em primeira mão por jornais da tarde como “A Capital” e o “Diário de Lisboa”, que aproveitaram estrofes pelas quais Zeca Afonso se celebrizou para assinalarem a morte do artista na capa.

“Conseguiu a doença aquilo que não fora possível à opressão nem à intolerância: calar a voz que nos trazia cantigas do Maio e nos ensinava cantos velhos e rumos novos”, escreveu “A Capital”. Um “poeta”, referia o mesmo jornal, que gerou no país “o consenso que se concede ao património comum, mesmo que não o percebesse por inteiro”.

Os vespertinos, jornais que tinham edição matinal, como por exemplo o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”, só apresentaram a notícia no dia seguinte, já focados nas exéquias fúnebres do artista.

 

De notar que o “JN” de dia 23, dia da morte do intérprete, noticiava em primeira página que José Afonso ainda lutava contra a doença. Sinais de um tempo em que a velocidade da comunicação era outra.

Na RTP 1, o Telejornal das 19h30 do dia 23 de fevereiro apresentou imagens do velório. A jornalista Dina Aguiar, em voz off, deu conta da presença de centenas de pessoas no Pavilhão da Escola Secundária de São Julião, em Setúbal, onde o corpo de Zeca Afonso esteve em urna aberta. Na ocasião, marcaram presença, além das centenas de anónimos, muitos amigos de Zeca Afonso, como o futebolista Diamantino e os músicos Pedro Barroso, Júlio Pereira e Luís Cília. A maioria sem sinais de luto na indumentária, conforme a vontade expressa pelo cantor.

A forma como a televisão pública noticiou a morte de Zeca Afonso foi alvo da crítica mordaz de Mário Castrim, que a 26 de fevereiro de 1987, no espaço “Canal da Crítica” do “Diário de Lisboa”, escrevia: “Morreu José Afonso e a Televisão falou dele. Pois. Seria demasiado escandaloso se o não fizesse. Até lhe dedicou um programa no fim do Telejornal. Por acaso, o apresentador até trazia gravata preta, coisa que o cantor ‘proibira’, talvez não tivesse ainda lido as notícias, talvez não tivesse ouvido a Rádio. Acontece. E já agora, um pormenor relevante: com aquele programa, a RTP pretendia homenagear José Afonso ‘a quem a música portuguesa tanto deve’. Fizeste bem , televisãozinha querida, fizeste bem em explicar-te, não fossem pensar de ti outras coisas…”.

E concluía, a propósito da indiferença a que, na opinião do crítico, a televisão votava artistas “maiores”: “O que salvou José Afonso do total esquecimento (lembrarei que João Paulo Guerra, para iludir a censura, falou em Acez Osnofa…) foi o 25 de Abril. Tivesse ele morrido antes de 1974, nenhuma imagem sua vingaria. RTP prestou homenagem, mas não prestou menagem. Entendido.”

Concerto de tributo esta noite em Braga

Esta noite, em Braga, e inserido na programação do 8.º Festival Cultural Convergências Portugal/Galiza, haverá um concerto de “Tributo a Zeca Afonso e Rosalía de Castro”, poetisa galega que nasceu no dia em que o poeta morreu. O concerto, marcado para as 21h30, no Theatro Circo, vai contar com a participação dos Canto d’Aqui, Uxia, João Afonso (filho de Zeca Afonso) e Vozes do Arrieiro.

Artigo editado por Filipa Silva