A partir de Lviv, na Ucrânia, o fotojornalista do Observador, João Porfírio, traduz em palavras as imagens que a sua lente tem captado: "desespero, aflição e medo" de uma população dividida entre os que fogem da guerra e os que não podem ou não querem fugir-lhe. Em resultado do conflito, centenas de milhares de pessoas já abandonaram a Ucrânia.
Segunda-feira, 23h30, mais duas horas do que em Portugal continental. A noite caiu há muito sobre a cidade de Lviv, mas os ataques não dão descanso. Em poucas horas, soaram por duas vezes as sirenes. As pessoas que persistem na sexta maior cidade da Ucrânia são chamadas para dentro de bunkers improvisados.
Naquela zona não se ouvem bombardeamentos desde quinta-feira (24), mas “mais vale prevenir do que remediar”, comenta o fotojornalista português João Porfírio que fala com o JPN ao telefone, a partir de Lviv, momentos depois de ter deixado o abrigo. As autoridades identificam os ataques aéreos, mas não sabem “onde é que estes mísseis vão cair”, explica. O repórter está desde quinta-feira na Ucrânia juntamente com a jornalista Cátia Bruno. Ambos fazem parte da equipa do Observador destacada para o terreno.
O destino foi a Ucrânia ocidental, perto da fronteira com a Polónia. Desde que a Rússia lançou uma operação militar sobre o país, na madrugada de quinta-feira, que centenas de milhares de pessoas abandonaram a Ucrânia. Muitos fizeram-no a partir dali, de Lviv, enchendo comboios de pessoas e as plataformas de emoções na hora da despedida dos familiares que ficam para trás, na frente de combate.
Num cenário de desespero, persiste o “sentimento de resistência”
Em Lviv, a minoria étnica russa não é tão expressiva quanto noutras partes do país. Cerca de 9% era de etnia russa em 2001, em contraste com 17% no território todo, segundo o último Censo. A crença é, por isso, de “que esta zona da Ucrânia não interessa aos russos”. Mesmo assim, o sentimento de receio pela vida e pelo país não deixa estar ali presente.
Diferenças étnicas à parte, João Porfírio nota uma clara divisão na população: “Há algumas pessoas que estão de facto a fugir e essas estão a fugir porque têm medo da guerra e outra parte da população que acredita que a lutar contra os russos vão conseguir manter o seu território”, afirma.
O dia do repórter foi passado na estação de comboios, onde se formou uma enchente de famílias. Pessoas de todas as idades convergem para a fronteira à procura de fugir da guerra. Para João Porfírio, “foi um dos piores momentos da [sua] vida profissional”. Para quem se vê obrigado a fugir do seu país são momentos de desespero e de incerteza. “As pessoas não querem morrer e, portanto, vão fazer de tudo para sobreviver”, resume.
É um cenário de tensão e de confusão. Por aquele lugar, ouvem-se múltiplos choros de crianças, de pais e de mães. No ar cresce “o desespero das pessoas em passar, muitas vezes atropelando-se”. Os homens “põem as suas mulheres e os filhos em segurança dentro do comboio e continuam na Ucrânia”. Está em vigor uma Lei Marcial que obriga os homens entre os 18 e os 60 anos a ficar.
Muitas mulheres insistem também em ficar, afinal “o sentimento de resiliência” é maior. Mesmo assim famílias acabam por se separar, inevitavelmente. Quem fica, não “arreda pé”. No fim, o que querem é “defender o seu território custe o que custar”. O Alto Comissário para os Refugiados das Nações Unidas, Filippo Grandi, estima que terão saído da Ucrânia, até esta terça-feira (1), 677 mil pessoas.
As pessoas mobilizam-se e reinventam os seus meios para se proteger. “Há uma parte da população que não quer sair e que diz que vai ficar aqui a lutar até ao fim”, relata João Porfírio. O fotojornalista do Observador dá o exemplo de uma empresa de cervejas que se adaptou à situação e começou a “fazer cocktails molotov para se defenderem das tropas russas”.
É um exemplo da “grande mobilização” do povo ucraniano contra a invasão russa. Apesar do medo e do receio pelo futuro, impera ainda alguma esperança. “A maior parte das pessoas com quem falamos tem mesmo confiança de que esta guerra se vai resolver bem para o lado deles”, assinala o fotojornalista.
Porém, essa esperança não sai reforçada das negociações que agora decorrem entre ucranianos e russos. A primeira parte, decorreu na última segunda-feira (28 de fevereiro). Entretanto, juntou-se ao plano pelo menos mais uma ronda negocial.
Apesar desse diálogo ser bem-vindo, as pessoas “acreditam que os russos não vão ceder nas coisas que a Ucrânia quer”. Para elas, a solução não parte destas negociações. Não parte também das sanções aplicadas contra a Rússia. “As pessoas aqui acreditam que essas sanções não vão valer de nada porque o governo russo não se vai preocupar com essas sanções”.
Por ali lamenta-se não haver um maior envolvimento por parte da União Europeia (UE) e da NATO. No resto da Europa, há receio de que “interferir mais diretamente” no conflito pode levar a uma escalada, ultrapassando as fronteiras ucranianas. Para além disso, há claras limitações estruturais. A UE não é uma organização de cariz militar e a NATO age conforme o artigo 5, segundo o qual apenas intervém em caso de “ataque contra um aliado”.
Reportar desespero no meio do desconhecido em guerra
Em Lviv, contudo, a situação aparenta estar mais ou menos “controlada”. A equipa do Observador não acredita haver por enquanto perigo de vida. “A partir do momento em que eu sentir […] que corro efetivamente risco de vida, abandonarei o país”, explica João Porfírio. Na sua opinião, “o jornalismo de guerra nunca foi feito de heróis e nunca vai ser feito de heróis”.
O ambiente acaba por ser “um bocado hostil” no terreno. Como “o exército russo é conhecido por ter muitos espiões”, as pessoas sentem alguma desconfiança dos jornalistas. “Estão constantemente a perguntar quem é que nós somos, porque é que eu estou a tirar fotografias, donde é que eu sou, pedem-me para ver o passaporte, pedem-me para ver a carteira profissional”, revela. João Porfírio lamenta apenas que esta não seja a chatice “das outras pessoas”.
Por enquanto, não há data de regresso. “Estamos aqui mais ou menos seguros”, diz. Se a situação se agravar, há “um plano de fuga do país” preparado pelo governo português. Este tem acompanhado de forma regular os vários enviados especiais que se encontram em território ucraniano. São dadas assim garantias de proteção. Mesmo assim, o fotojornalista do Observador assinala: “ninguém se pode responsabilizar por nós a não ser nós próprios”.
No final, paira sob Lviv o mesmo cenário de “desespero, aflição e medo” que no resto do país. A guerra assola a Ucrânia e não dá sinais de tréguas.
Quem fotografa a realidade “capta as imagens o mais fortes possível para alertar as pessoas”. Imagens de choro e de angústia, mas também de esperança e resistência. A Ucrânia está em guerra, mas não está ao abandono.
Artigo editado por Filipa Silva