O secretário de Estado do Ensino Superior esteve no JPN para uma longa entrevista sobre alguns dos tópicos que dominam a agenda do setor: do novo modelo de acesso ao novo modelo de financiamento, passando pelo alojamento e pela saúde mental dos estudantes, sem esquecer um balanço da experiência governativa para o docente e investigador da Universidade do Porto.

Passar do estudo das policies à prática da politics é, para o agora secretário de Estado do Ensino Superior, “um privilégio” e “uma oportunidade de tentar contribuir” de forma diferente para um sistema do qual faz parte como docente e investigador e que é o seu objeto de estudo há muitos anos.

Pedro Nuno Teixeira, 50 anos, professor catedrático da Faculdade de Economia do Porto, aceitou o convite para integrar o Governo de António Costa eleito em janeiro último por considerar que a maioria absoluta e os quatro anos e meio de legislatura favorecem a implementação de mudanças “em diversas frentes” do setor.

O Orçamento do Estado para 2023, o primeiro da responsabilidade da atual equipa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, serviu para “sinalizar prioridades” e elas são muitas.

O novo modelo de acesso ao ensino superior é um deles e vai ser alvo, em dezembro, de nova ronda negocial. Segue-se a discussão do novo modelo de financiamento. Em ambos os casos, o objetivo é que sejam aplicados já em 2023. 

Quanto ao há muito prometido programa de saúde mental para os estudantes de ensino superior, o secretário de Estado atira para o início de 2023 a definição de como se vai concretizar. 

Do longo rol de assuntos, fizeram ainda parte o alojamento académico e a possibilidade de os politécnicos oferecerem doutoramentos. Pedro Nuno Teixeira defende o sistema binário atual. Sem ele, garante, “vamos ter um país mais desigual e menos coeso, contrariamente àquilo que seria desejável.”

Pode ouvir na íntegra a entrevista em áudio ou ler a versão editada na transcrição abaixo.

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JPN – Como é que alguém que estuda políticas há tanto tempo, se vê do lado de quem as tem que pôr em prática?

Pedro Nuno Teixeira (PNT) – É uma experiência diferente, e é um privilégio para quem dedica anos a refletir sobre uma determinada área, poder definir, concretizar. É uma oportunidade quase irrecusável.

E foi por isso que aceitei, deixando a vida que tinha escolhido e de que gosto muito que é ser professor, fazer investigação, [ter] contacto com os alunos, com os colegas. 

É uma oportunidade de tentar contribuir para mudar, para melhorar aspetos num sistema que é não só um objeto de estudo há muitos anos, mas também o sistema do qual faço parte. É uma responsabilidade muito grande. Aquilo que nós fazemos pode ter um impacto na vida de muitas pessoas: estudantes, docentes, instituições que são muito importantes para o país. 

Certamente, há erros que vão ser cometidos, há decisões que, a posteriori, vamos achar que não foram as melhores. Mas não fazer também tem consequências. A inação tem um impacto em todas essas dimensões.

JPN – Não se arrependeu, então.

PNT – Era complicado ao fim de oito meses estar arrependido. Tem sido uma experiência muito positiva, por aquilo que encontramos na capacidade de trabalho das pessoas, na disponibilidade para nos integrar e apoiar. Isso é muito positivo. Um dos aspetos que também pesou, quer para mim, quer para a professora Elvira Fortunato, quando aceitamos o repto, foi a possibilidade de poder – sendo uma legislatura longa, de quatro anos e meio, praticamente – pensar e concretizar políticas com um horizonte temporal e uma perspetiva de estabilidade que muitas vezes não existe. Até agora, tem sido uma experiência muito positiva. O balanço, depois, far-se-á no final.

JPN – É economista, vem da Faculdade de Economia do Porto. O processo de fazer parte da preparação do OE ensinou-lhe alguma coisa? Foi um desafio interessante poder participar?

PNT – Foram duas experiências diferentes. No OE2022, havia um compromisso político, do senhor primeiro-ministro, de apresentar o mesmo orçamento que tinha sido chumbado, há cerca de um ano. Portanto, as mudanças foram muito pequenas, e naquilo que era essencial. Não fazia sentido ser de outra forma. Por isso, a primeira experiência foi uma experiência mais limitada em termos de processo de desenvolvimento e formulação. 

O OE2023 foi mais rico desse ponto de vista. Tinha, também, um elemento adicional que nos parecia importante: sendo o primeiro OE formulado por esta equipa, era importante que se perspetivasse uma linha programática. Era preciso sinalizar prioridades e em que medida o orçamento é um instrumento que apoia o desenvolvimento de políticas. Penso que já foi possível, em alguns aspetos, mostrar isso.

JPN – No OE2023 prevê-se um reforço de 44 milhões de euros no Ensino Superior, mas no debate do orçamento, a ministra Elvira Fortunato disse que estava a ser estudado com o restante elenco governativo a possibilidade de compensar o aumento das despesas energéticas nas instituições, com alguma verba adicional. Vai ser possível ajudar as instituições neste ponto?

PNT – Esse reforço dos 44 milhões é para a dotação das instituições de ensino superior (IES). O aumento do orçamento da área é bastante superior. A questão dos custos de energia é uma preocupação muito grande para todas as instituições. Por isso, é que o governo tem lançado um conjunto de medidas para os particulares, as famílias e também para as empresas. 

Quando a senhora ministra falou no debate orçamental sobre isso, tinha uma dupla dimensão. Há uma preocupação de, conforme correr o ano de 2023, se houver a necessidade, de mobilizar recursos adicionais para além desse reforço que já está consagrado na proposta do orçamento de 2023. Mas também [há] a preocupação de encontrar já em 2022, a possibilidade de um reforço. Portanto, aquilo em que estamos a trabalhar, é tentar ter, ainda este ano, um reforço adicional, porque, de facto, o aumento dos custos de energia já se começou a sentir ao longo deste ano e isso não foi previsto no orçamento de 2022.

[A 24 de novembro, já depois da realização desta entrevista, o primeiro-ministro António Costa anunciou um reforço de 25 milhões de euros nas verbas a transferir para as instituições para fazerem face ao aumento dos custos com a energia]

JPN – Já agora, a ministra também mencionou a esse nível que o efeito do aumento da fatura energética afeta de forma diferente diferentes instituições. Como é que o governo vai desenhar aqui um apoio que no fundo atenda a essa especificidade de algumas instituições? 

PNT – Os fatores são muito diversos. Há a questão da componente laboratorial, muito intensiva em energia, mas, por exemplo, quem tem estruturas de desporto muito significativas, que tenha por exemplo piscinas aquecidas, sabe que isso significa também um custo grande. Ou quem tem uma escola de belas artes que tem fornos para trabalho dos estudantes… 

Mas, por exemplo, as instituições que estão mais localizadas no interior, onde as condições meteorológicas são mais adversas, também vão notar isso. Nós estamos a olhar para um conjunto de outros fatores que também incluem aspetos que não têm a ver com isto. Por exemplo, havia instituições com contratos plurianuais, e havia instituições que tinham contratos mais curtos.

JPN – Contratos de energia, entenda-se?

PNT – Exatamente, contratos quer para a parte de eletricidade, quer para a parte do gás. Pedimos uma estimativa quer ao Conselho de Reitores, quer ao Conselho de Coordenadores dos Institutos Superiores Politécnicos, do que estava a ser este aumento de custo. Aquilo que nós estamos a trabalhar é num reforço que esteja em linha com esse aumento de despesa que [as instituições] tiveram nestas áreas.

JPN – Quando olhamos para os objetivos da equipa governativa para este OE temos a revisão do modelo de financiamento, do modelo de acesso, do Regime Jurídico das IES, temos o combate ao abandono escolar, temos programas de saúde mental, etc. Este plano não será ambicioso demais?

PNT – Eu reconheço que o programa é ambicioso, mas nada do que é mencionado é pouco importante. E deveríamos aproveitar o facto de termos uma legislatura com estabilidade e com tempo, para discutir e tentar melhorar em diversas frentes. Há frentes que foram sendo, de certa forma, adiadas, porque as condições – políticas ou financeiras – não eram as mais adequadas. Mas parece haver um consenso alargado de que, por exemplo, diplomas como o RJIES, que foi aprovado em 2007 – já [há] 15 anos – eram uma premência. 

Do ponto de vista dos estatutos de carreiras, nalguns casos estamos a falar de estatutos, como no caso do ensino superior privado, que nunca existiram. O facto de, até hoje, não ter sido possível regulamentar as carreiras docentes no ensino privado é uma preocupação.

Relativamente ao modelo de financiamento, a última versão simplificada, que é de 2009, não é aplicada desde 2010. Este ano tentamos dar um sinal na forma como foi distribuída a dotação das IES para começar a corrigir isso. Mas o modelo de financiamento do ensino superior – que é um instrumento que pode ser muito importante para estimular as instituições a dedicarem mais atenção a determinados objetivos ou a perseguirem uma trajetória diferente – precisa de ser revisto.

JPN – Desta lista, quais são os pontos de intervenção mais urgente?

PNT – Por exemplo, a questão do acesso: temos em vigor uma legislação do ponto de vista do acesso ao ensino superior que, nos últimos três anos, foi adaptada ao contexto da pandemia. Tendo a expectativa de que para o ano isso não vai ser necessário, havia a necessidade de decidir [entre] regressar àquilo que estava em vigor (e que só foi ajustado por causa da pandemia) ou ir para uma situação diferente.

Durante o mês de dezembro vamos fazer uma segunda ronda [de negociações], onde, aí, avançaremos para uma estruturação mais definida daquilo que serão as linhas do modelo de acesso a vigorar a partir do próximo ano.

JPN – No debate parlamentar também foi mencionado que seriam auscultadas entidades como o CRUP e o CCISP, sobre esta matéria. Quer deixar-nos algumas pistas sobre o futuro modelo de acesso ao ensino superior?

PNT – Isso ainda está em discussão. A opção foi esperar pelo final do Concurso Nacional de Acesso, da terceira fase. Até porque, este ano, com a aprovação do programa do governo, haveria condições para alterar o sistema de acesso em maio ou junho. Ora, não fazia sentido mexer nessa altura, até porque os estudantes que se estavam a preparar para candidatar ao ensino superior tinham tido um ensino secundário em que os três anos tinham sido afetados pela pandemia. Pensamos que era muito mais adequado esperar pelo final desse período, terminar o concurso nacional de acesso de 2022/23 e depois iniciar a discussão. 

Houve uma primeira reunião com os principais intervenientes no sentido de identificarem aquilo que eram as preocupações mais prementes. Depois, foi iniciada uma ronda de reuniões com todos os atores relevantes: Conselho de Reitores, CCISP, Associação do Ensino Superior Privado, representantes dos estudantes, representantes dos pais, Conselho Nacional de Educação e Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior. A ideia é apresentar um conjunto de preocupações a todas estas entidades e dar algum tempo para refletirem [sobre] a forma como se posicionam face a essas preocupações. Depois, durante o mês de dezembro, fazer uma segunda ronda, onde, aí, avançaremos para uma estruturação mais definida daquilo que serão as linhas do modelo de acesso a vigorar a partir do próximo ano.

JPN – Não pode responder como é que vai ser o futuro modelo porque ele está a ser ainda discutido, mas é possível dar alguns exemplos de coisas que devem estar no novo modelo de acesso? É uma oportunidade de mudarmos aspetos como…?

É prematuro avançar, porque, se pedimos a estes parceiros que refletissem e nos dessem a sua opinião, avançar muito é estar a condicionar uma discussão que ainda está a meio. 

O que é que nos parece importante: que o processo de diversificação das vias de acesso, que foi ocorrendo ao longo dos últimos anos, seja mantido e, se possível, melhorado. Porque isso nos permitirá trazer estudantes que, tradicionalmente, não viriam para o ensino superior e de que precisamos. Isso permite qualificar estes jovens, para os preparar para um futuro que vai exigir mais qualificação e mais formação.

Também era importante que valorizássemos dimensões de equidade no sentido horizontal e no sentido vertical. Que tentemos tratar da mesma forma candidatos que têm características semelhantes, [pensar] em como é que reduzimos a desigualdade entre estudantes que muitas vezes não têm as mesmas condições no acesso. Mas também, numa lógica de equidade vertical, [pensarmos] como é que tratamos estudantes que têm características diferentes. Nós temos tido um sistema que dá preferência na colocação aos estudantes com deficiência e parece-nos que era importante preservar isso, e penso que será um consenso possível. Temos também dado essa preferência aos candidatos que são emigrantes, lusodescententes, porque nos parece importante a captação desse público para o ensino superior em Portugal. 

Era importante, também, aproveitar esta oportunidade para simplificar alguns aspetos em termos do sistema. Por exemplo, uma preocupação que é muito grande das famílias e dos estudantes, quando se candidatam, é que não percebem porque é que se candidatam no início de agosto e sabem os resultados no início de setembro. Porque, de facto, há um conjunto de grupos de candidatos, os tais contingentes especiais, que têm processos que são mais complexos do ponto de vista de análise. Todo o sistema fica bloqueado por causa desses. Acho que podemos equacionar, por exemplo, autonomizar alguns desses contingentes e [isso] pode permitir antecipar as colocações. É um aspeto que vale a pena discutir.

[Nas harmonização de taxas e emolumentos] parece-nos que era mais ajustado que as próprias IES conversassem entre si e tivessem a capacidade de autorregulação. Se não for suficiente, acho que o ministério, como entidade reguladora do sistema, terá de ter um papel.

JPN – No que toca às taxas, falou-se durante o debate do OE que há taxas e emolumentos com discrepâncias notáveis entre instituições. E durante o debate a ministra Elvira Fortunato mostrou-se disponível para uniformizar estes valores. A questão aqui é se estes valores vão ser efetivamente uniformizados e de que forma é que se pode uniformizá-los.

PNT – Temos que perceber qual é a racionalidade de algumas dessas taxas e emolumentos. Em que medida é que se justificam, em que medida são algo adicional que justifica ser cobrado além da propina que está associada a cada ciclo de estudos, ou o que é que explica essas diferenças, do ponto de vista do custo. Do ponto de vista do ministério, parece-nos que era mais ajustado que as próprias IES conversassem entre si e tivessem a capacidade de autorregulação. Discutissem no sentido de perceber porque é que umas cobram e outras não cobram, e porque é que outras cobram valores muito diferentes. Se essa capacidade de autorregulação não for suficiente, acho que o ministério, como entidade reguladora do sistema, terá de ter um papel.

JPN – Como acontece, por exemplo, com o valor das propinas. Poderia, por exemplo, definir um valor máximo a aplicar?

PNT – Pode passar por isso, pode passar por definir quais as taxas e emolumentos que são razoáveis, que têm uma justificação clara e quais os serviços ou aquelas dimensões, que nos parece que estão subsumidos no custo da propina. 

Há obviamente aqui uma preocupação também: isso significa receita que as instituições vão perder. Num contexto em que as propinas têm estado congeladas e a ser diminuídas, em que o financiamento tem aumentado, mas porventura, não ao ritmo que muitas vezes as instituições gostariam, qualquer redução de fontes de financiamento deverá ter uma compensação e, portanto, estando prevista uma revisão do modelo de financiamento no próximo ano, essa é uma questão que inevitavelmente se vai colocar nessa altura. 

Há a expectativa de que o estudo da OCDE [sobre o modelo de financiamento] seja apresentado ainda este ano, provavelmente em dezembro, e depois, a partir de janeiro, iniciar a discussão com as instituições para que o modelo fique definido a tempo de ser já aplicado para o OE2024. 

JPN – E era do modelo de financiamento que queríamos também falar. Duas questões: a ministra disse que estava à espera de um estudo da OCDE sobre o modelo de financiamento. Têm uma previsão para a receção desse trabalho? E o que é que o Governo entende que seria um modelo de financiamento melhor do que aquele que temos atualmente, sendo que o que está em vigor atualmente, nem sequer está a ser aplicado exatamente como está definido.

PNT – O modelo de financiamento que está em vigor é de 2006, mas houve uma simplificação em 2008. E essa é uma lição importante do ponto de vista de reflexão para o próximo ano: a experiência de muitos sistemas de financiamento do ensino superior diz-nos que modelos muito complexos têm um efeito muito limitado. Se nós tivermos muitos indicadores, cada um destes indicadores tentando estimular as instituições num determinado objetivo… Se dermos muitos sinais, a mensagem perde-se.

A fórmula deve ser uma base à qual se podem acrescentar outros elementos, por exemplo, numa lógica de contratualização, onde, daí, nós introduzimos elementos de diferenciação e especificação.

Há a expectativa de que o estudo da OCDE seja apresentado ainda este ano, provavelmente em dezembro, e depois, a partir de janeiro, iniciar a discussão com as instituições para que o modelo fique definido a tempo de ser já aplicado para o OE2024. 

Agora estamos com esta discussão do acesso, acho que este deve ser o tema prioritário até ao final deste ano. O facto de a OCDE se ter atrasado um pouco na entrega do estudo até ajuda. Estar a iniciar uma outra discussão que também é muito importante para o sistema como é o financiamento, ao mesmo tempo que estamos a discutir uma questão que é absolutamente essencial para o sistema como o acesso, cria uma dispersão muito grande. Por isso, acho que ter um processo negocial em que nós vamos discutindo tema a tema, de uma forma concentrada, aprofundada, pode ser bastante profícuo em termos de conseguirmos um resultado que seja satisfatório para todas as partes.

JPN – Um dos desafios do desenho deste modelo é que ele seja justo para a situação presente da instituição, mas que funcione também como um estímulo, ele próprio, para que as instituições sejam mais eficientes ou produtivas. Suponho que isso seja difícil.

O modelo de financiamento, no fundo, tem que ter essas duas dimensões: garantir o funcionamento do sistema, no sentido de evitar roturas, mas também poder ser um fator gerador de mudança, de acordo com os objetivos que nós tivermos em termos de política pública. Cada modelo de financiamento corresponde a determinados objetivos. O que é que nós queremos fazer? Queremos promover mais eficiência do ponto de vista formativo? Que os estudantes terminem as suas formações? Que haja menos abandono? Que terminem no período em que é expectável terminarem? Então, se calhar, isso deve ser um critério. Queremos favorecer a coesão territorial e a distribuição da rede do ensino superior pelo país, nomeadamente, nas zonas de baixa pressão demográfica?

A discussão do modelo de financiamento é complexa, porque o modelo de financiamento tem que refletir uma determinada visão e determinados objetivos para o sistema.

JPN – Falando sobre alojamento, que tem sido o tema mais discutido no arranque do ano letivo. Do acordo que o governo fez com a Movijovem, apenas 22% das camas disponibilizadas foram ocupadas. Já no ano anterior o acordo feito com entidades ligadas à hotelaria também não tinha tido grande resultado. Porque é que estas soluções não têm uma grande procura por parte dos estudantes?

PNT – Há vários fatores. Um pode ser de desconhecimento. Sobretudo os estudantes de primeiro ano, se calhar muitos deles não tinham presente essas possibilidades. Temos estado a trabalhar a divulgação através das federações e das associações académicas que podem ter aqui um papel muito importante de circulação dessa informação, porque muitas vezes recebem solicitações por parte dos novos estudantes. 

Os serviços de ação social também nos dizem que muitos estudantes têm resistência à partilha do quarto. Temos visitado muitas IES, temos falado com serviços de ação social, temos visitado muitas residências – até porque muitas delas também vão ser reabilitadas – e, muitas vezes, dizem-nos: “Durante a pandemia nós reduzimos a ocupação para não haver partilha de quarto e quando agora nós tínhamos a vontade de voltar a repor a capacidade anterior, muitos dos estudantes resistem a isso, porque se habituaram a uma maior privacidade”. 

Muito do esforço que o Plano Nacional do Alojamento no Ensino Superior (PNAES) vai fazer é criar condições nas residências atualmente existentes muito melhores do que aquelas que existiam. Porque, de facto, as expectativas que hoje temos em termos de conforto, privacidade e espaços de convívio é muito diferente daquela que havia há 20 ou 30 anos, quando muitas destas residências foram construídas.

[Sem sistema binário] vamos ter um país mais desigual e menos coeso, contrariamente àquilo que seria desejável.

JPN – A 24 de junho, o Parlamento aprovou, na generalidade, a possibilidade de os politécnicos concederem o grau de doutor e de estas instituições poderem adotar a designação de Universidades Politécnicas. A discussão está na especialidade. No debate do Orçamento, o professor mostrou-se crítico desta possibilidade por poder “conduzir a um sistema mais estratificado e homogeneizado”. Quer explicar esta visão?

PNT – O que aconteceu a 24 de junho é que os partidos votaram, por unanimidade, que esses documentos baixassem à Comissão de Educação e Ciência para apreciação na especialidade. A aprovação era para viabilizar que isto fosse discutido. Nesse contexto, a Comissão de Educação e Ciência decidiu convocar um conjunto de individualidades e entidades para prestarem esclarecimentos ou contribuírem para o debate e eu fui solicitado.

É perfeitamente legítimo que o Parlamento entenda que quer mudar o sistema. Tem é que ter presente dois aspetos: perceber que tivemos um sistema que funcionou durante 50 anos e que, se for alterado, não será para dois ou três anos, mas deve ser pensado, então, para várias décadas; e, em segundo lugar, perceber as implicações disso: por exemplo, nós diversificamos o ensino secundário em ensino científico-humanístico e em ensino profissional, porque tínhamos um ensino superior também ele diversificado. Se o unificarmos, como é que fica essa relação? Quais os custos do ponto de vista de contratação de mais docentes? Como é que vamos olhar para uma rede que passará a ter um número de universidades que tem a Espanha, que tem cinco vezes a nossa dimensão?

O que nos diz a experiência é que quando há mais concorrência, a concorrência não leva à dispersão, mas à concentração. Ora, se as instituições forem mais semelhantes, vão ser mais concorrenciais. Ao serem mais concorrenciais, qual é a hipótese mais plausível? As instituições mais pequenas, localizadas em regiões mais frágeis, fortalecerem-se ou ficarem ainda mais frágeis? Eu não acho crível que sejam as instituições mais fortes com mais capacidade de investigação que sejam ameaçadas por instituições que apenas recentemente passaram a assumir a investigação como uma prioridade. Temos a experiência de outros países que unificaram o sistema, com argumentos muito semelhantes, como a Inglaterra e a Austrália. Acho que a tendência não vai ser muito diferente do que aconteceu nesses países, que é haver uma maior polarização do sistema que vai, tendencialmente, concentrar os recursos nas instituições mais fortes, com a agravante de que as instituições mais frágeis estão localizadas em regiões que são, também, economicamente mais frágeis.

Portanto, vamos ter um país mais desigual e menos coeso, contrariamente àquilo que seria desejável.

JPN – A ministra Elvira Fortunato também mencionou que há a intenção de aumentar, até 2027, a percentagem de doutoramentos em ambiente não académico de 8% para 50%. Estamos a falar de um período de cinco anos. Este salto é realista? E, por outro lado, os doutoramentos feitos por politécnicos não podiam ajudar a este objetivo?

PNT – O objetivo é ambicioso. Mas, de forma mais rigorosa: o valor de 8% é das novas bolsas atribuídas este ano para 50% das novas bolsas atribuídas em 2027. Não será termos metade das bolsas, na altura, em empresa. É fazermos um caminho de crescimento em que as novas bolsas de doutoramento que são atribuídas sejam equilibradas entre aquelas que são para realizar em ambiente académico e em ambiente não académico. 

Eu sei que instintivamente pensamos que o contexto não académico é o contexto empresarial, mas pode não ser. Por exemplo, uma dimensão que pode ser muito importante nesse sentido: uma das áreas que precisamos de fortalecer é a da investigação clínica; um dos instrumentos que podemos usar para fortalecer isso pode ser ter mais profissionais de saúde a fazer doutoramento.

Claro que, porventura, o candidato mais natural e significativo será o do doutoramento em contexto empresarial, e aí as Agendas Mobilizadoras – que é o programa mais significativo em termos de recursos do PRR – tem uma aposta muito grande de contratação de recursos humanos seja ao nível de alunos de doutoramento, seja de investigadores num contexto de grande aproximação entre o sistema científico e o sistema empresarial. Portanto, sendo um objetivo ambicioso, penso que há condições para nos próximos cinco ou seis anos nós darmos passos significativos. 

E é absolutamente essencial diversificarmos o percurso dos doutorados. Não podemos dizer que um doutorado é muito importante, porque é uma pessoa mais qualificada e depois de certa forma dizermos, de uma forma implícita, que ele só serve para fazer investigação ou para a parte académica.

E só porque não respondi à questão do politécnico: há muito tempo que as universidades já fazem doutoramentos em empresa e aliás isso também seria uma questão complicada do ponto de vista dos politécnicos porque eles têm escolas superiores de educação, escolas superiores de saúde, têm escolas de artes performativas, não me parece muito previsível que essas áreas façam doutoramentos em empresa. Acho que, em rigor, deveríamos falar, no caso dos politécnicos, num doutoramento profissionalizante mais do que em contexto empresarial, porque senão isso significa que uma parte significativa das escolas dos IP não teria capacidade ou muita dificuldade para fazer doutoramentos o que não será o objetivo. 

Esse é um dos objetivos prioritários da nova equipa da FCT, que tomou posse a 1 de julho: simplificar, desburocratizar, criar um sistema [de atribuição de bolsas] que parta mais de um pressuposto de confiança e não de desconfiança.

JPN – Falando de doutorandos de uma forma mais geral: o Governo tem feito um grande caminho nos últimos anos ao nível dos prazos de atribuição de bolsas de ação social. No caso da FCT continuam a passar meses entre o processo de candidatura, a aprovação e o início do pagamento da bolsa. Não há nada a fazer para que este processo seja mais célere?

PNT – Se me permitir, eu sublinharia a primeira parte do que disse. Foi uma mudança que teve um impacto enorme, porque não só introduziu previsibilidade na atribuição da bolsa, como também agilidade na atribuição dessa bolsa. Isso significou que, ao fim do primeiro mês [do presente ano letivo], nós já tínhamos cerca de metade dos pedidos de bolsa analisados e cerca de 40% dos pedidos começar a ser pagos. Isso contrasta com uma situação, há cinco ou seis anos, em que teríamos 6 ou 7% dos processos analisados no mesmo período.

Relativamente às bolsas de doutoramento, é um processo mais complexo, porque tem toda uma tramitação do ponto de vista legal, em termos de audiência prévia, de contestações, de reclamações, porque aí as pessoas concorrem umas com as outras. Enquanto que, no caso da Ação Social, se as pessoas verificam os critérios de elegibilidade passam automaticamente a beneficiar da bolsa. No caso das bolsas de doutoramento, o número de bolsas é o montante definido. Há todo um processo de avaliação dos candidatos de posicionamento relativo e, portanto, a reclamação de um candidato pode significar que há um candidato que passa a beneficiar da bolsa e outro que deixa de a ter, porque fica posicionado de forma diferente. Também é um processo de complexidade burocrática, porque uma grande parte deste financiamento decorre de fundos europeus.

A nossa expectativa é que aquilo que a FCT faz ao nível das bolsas de doutoramento, ao nível dos contratos, ao nível dos projetos, que todo o processo de candidatura, de seleção e de contratualização seja um processo que vá sendo simplificado e agilizado. Para este ano, não seria possível, mas esse é um dos objetivos prioritários da nova equipa da FCT, que tomou posse a 1 de julho: simplificar, desburocratizar, criar um sistema que parta mais de um pressuposto de confiança e não de desconfiança, para tornarmos este processo menos pesado para a comunidade científica e menos pesado para a própria FCT.

JPN – No debate do Orçamento na especialidade, a ministra do Ensino Superior disse que ia reunir com o ministro da saúde para debater o programa para a Saúde Mental no ensino superior. Em que ponto é que isto está e como é que vai funcionar? 

PNT – Havendo um Plano Nacional de Saúde Mental não faria sentido que o MCTES tivesse uma iniciativa que fosse desgarrada do que já estava a ser definido em termos de orientações de saúde para todo o sistema. Com a mudança de equipa no Ministério da Saúde, isso obrigou a alguma paragem, mas já tivemos reuniões quer com a nova equipa da Saúde quer com a coordenação do Plano Nacional para a Saúde Mental.

O que vamos fazer agora é um grupo de trabalho que junte uma equipa de pessoas indicadas pelo Plano Nacional para a Saúde Mental e pessoas indicadas pelo MCTES – prioritariamente pessoas que estejam habituadas a trabalhar em Saúde Mental com esta faixa etária e com este perfil da população e, do lado do Ensino Superior, há uma rede de serviços de apoio psicológico do ensino superior que tem uma experiência de muitos anos a trabalhar com esta população, e perceber o que fará mais sentido concretizar.

Sendo um tema muito importante, é importante que seja tratado de uma forma que não seja voluntarista ou de uma forma pouco estruturada. O objetivo é fortalecer aquilo que de bom está a ser feito, replicar de umas instituições para outras e apostar numa lógica de promoção e prevenção da saúde mental. 

O que temos em muitos casos são problemas de ansiedade, de dificuldade em lidar com o stress, muitas vezes associado a um período de grandes mudanças na vida destes jovens. O que temos é de saber lidar com estas situações, até para que elas depois não resultem em situações mais graves porque o pior que podíamos ter seria um contexto de medicalizar ou anatemizar algo que em muitos casos faz parte da nossa vida. 

É, aliás, essa a lógica do programa de combate ao insucesso e ao abandono, porque de facto esse processo de entrada no ensino superior e a entrada no primeiro ano, o que nos diz toda a literatura é que é o período crítico do ponto de vista de integração pessoal e académica.

JPN – Mas se esse grupo de trabalho ainda está a ser constituído, isso quer dizer que estas respostas ainda vão demorar a chegar ao terreno?                     

PNT – A nossa expectativa é que, no início de 2023, tivéssemos o desenho definido para lançar o edital de candidaturas, para estar definido como é que nós vamos concretizar este Programa para a Saúde Mental.

JPN – Candidaturas de projetos associados à promoção da Saúde Mental?   

PNT – O modelo concreto vai depender também daquilo que nos disser esta equipa de pessoas com experiência quer do lado da saúde mental, quer do lado do acompanhamento psicológico no ensino superior. Pode passar ou por um processo de candidaturas das IES ou pela criação de equipas que sejam apoiadas e financiadas dessa forma e que possam atuar em colaboração entre o SNS e as IES. Não fecharia à partida o modelo, porque vai depender muito do que resultar desta conversa.

Eu acho que, por definição, os alunos não devem estar satisfeitos. Essa insatisfação é que nos faz mudar, repensar, melhorar.

JPN – O professor gostava de ser estudante do ensino superior, atualmente, em Portugal? Acha que é bom ser estudante do ensino superior em Portugal?

PNT – Não só acho, como estou a fazer os possíveis para que seja ainda melhor. Se não achasse isso, não teria entusiasmo naquilo que estou a fazer. Convictamente, acho que o melhor instrumento que nós temos, nas sociedades contemporâneas, para dar oportunidades às pessoas e sobretudo para dar oportunidades para que o futuro daqueles jovens seja melhor do que foi o dos seus pais em muitos casos, é o ensino superior. É isso que hoje em dia faz a grande diferença.

Um dos aspetos que é muito interessante e que quando nós olhamos para os inquéritos de valor, mesmo quando nós fazemos perguntas sobre a participação cívica, política, a tolerância face aos imigrantes, face àqueles que são diferentes de nós, a grande diferença é entre quem tem formação superior e quem não tem formação superior. Seja nos mais velhos, seja nos mais novos. A formação superior muda-nos no sentido de nos dar oportunidades. É aquilo que eu vi ao longo destes anos todos com os meus alunos, mas é aquilo que eu vejo também em muitas instituições quando vou, por exemplo, a um encontro de antigos alunos. O testemunho deles é um testemunho muito vincado de como a sua vida foi diferente para melhor, porque puderam fazer uma formação superior. Pessoas de gerações muito diferentes.

Mas se o professor fosse aluno do ensino superior no ano letivo de 2022/2023, estava satisfeito?

Eu acho que, por definição, os alunos não devem estar satisfeitos. Essa insatisfação é que nos faz mudar, repensar, melhorar. E também temos de olhar com uma perspetiva crítica para essa insatisfação para perceber: temos assim tantas razões para estar insatisfeitos? Temos aspetos que nos podem animar e dar esperança para que as coisas possam ser melhores?

Acho que há, em muitas dimensões, uma realidade que é hoje no ensino superior muito melhor do que era há 20 ou 30 anos. A preocupação com o sucesso dos alunos, com o acompanhamento dos alunos, é hoje muito mais significativa. A qualidade científica da formação superior é hoje muito superior àquilo que era. Simplesmente, hoje os desafios são novos. Não é pelo facto de termos feito um determinado percurso que nós vamos dizer “pronto, agora vamos descansar”. 

Por exemplo, pela primeira vez na nossa história temos um nível de qualificação dos mais jovens acima da média da União Europeia e da OCDE. E isso dá-nos perspetivas de futuro, até enquanto país, mas não nos deve descansar. Deve estimular para dizer: “se nós conseguimos fazer todo este percurso e melhorar do ponto de vista quantitativo, agora temos de melhorar do ponto de vista qualitativo.” 

Portanto, devemos continuar a trabalhar para ter um ensino de mais qualidade, para darmos mais oportunidades àqueles que ainda não as têm, para que este percurso seja reconhecido e valorizado pelo mercado de trabalho. A minha confiança e a minha esperança tem a ver com o facto do sistema de ensino superior português e do país ter conseguido fazer progresso ao longo dos últimos 20, 25, 30 anos, muito significativos, sobretudo quando comparados com outros países. Se fomos capazes de fazer isso, acho que temos de ter a esperança e a ambição de fazer igualmente bem nos próximos 20 anos.