Na passada quinta-feira (19) realizou-se, como parte da iniciativa “Tratar o Cancro por Tu”, um debate acerca de cancro pediátrico. Da discussão, retirou-se que falar sobre o cancro, em si, já é tabu; no entanto, quando crianças entram na conversa, há uma fuga maior ao tema

Não havendo uma conversa ativa, abre-se espaço para a desinformação ou iliteracia. Com o evento realizado na Biblioteca Almeida Garrett assinalou-se, aliás, uma conversa inédita, mas muito necessária, sobre o tema. Ainda assim, levanta-se a questão: o que é, afinal, o cancro pediátrico?

O JPN foi questionar Maria Bom-Sucesso, diretora do serviço de oncologia pediátrica do Hospital de São João. “Os cancros pediátricos são do tipo de células a que chamamos tipo embrionário, enquanto que nos tumores de adultos há células mais diferenciadas, de tipo epitelial. Isto significa que os cancros pediátricos, na sua maioria, têm uma taxa de replicação alta – aumentam mais rapidamente que nos adultos”, informa, sublinhando que se trata de uma explicação “muito generalista”. “Significa também que tem de se atuar rapidamente”, acrescenta.

Os cancros pediátricos (isto é, que atingem crianças e jovens entre os 0 e os 18 anos) são considerados um fenómeno raro. De acordo com a SIOPE- Sociedade Europeia de Oncologia Pediátrica, o cancro é, na Europa, a primeira causa de morte por doença em crianças com idade superior a um ano. Mais que isso, cancros raros, incluindo todos os tipos de cancro em crianças, representam cerca de 22% de todos os casos da doença diagnosticados anualmente na Europa.

Deve ainda salientar-se que há vários tipos de cancro em crianças e que pode surgir em qualquer parte do corpo. No entanto, a doença afeta sobretudo células sanguíneas cerebrais e do sistema músculo-esquelético. Em idades pediátricas, alguns dos tipos de cancro mais comuns são a leucemia (afetando os glóbulos brancos), tumores no sistema nervoso centralneuroblastomas (que surgem a partir do sistema nervoso simpático) ou linfomas (que afetam o sistema linfático).

Normalmente o cancro é associado a causas ambientais. Dos fatores de risco conhecidos, está incluído o estilo de vida e a dieta, infeções virais, perturbações do sistema imunitário ou causas genéticas (podendo, ou não, estar associadas a fatores hereditários). Não há ainda, contudo, certezas sobre o que provoca o cancro infantil.

Mas apesar de ser uma das maiores causas de morte não-acidental nas crianças, os tratamentos são uma “história de sucesso”, como diz Maria Bom-Sucesso. Atualmente, a taxa de cura ronda os 80%, ultrapassando a maioria dos casos em adultos. Ao contrário do que se acredita, as crianças e jovens apresentam uma maior “tolerabilidade” aos tratamentos, aguentando melhor doses superiores de fármacos e tratamentos mais agressivos. Por outro lado, surge uma maior preocupação acerca dos efeitos tardios ou do aparecimento de sequelas .

“Uma criança que termina um tratamento aos 10 anos de idade vai ter muitas décadas pela frente e, portanto, há maior probabilidade de aparecerem alguns efeitos mais tardi0s”, explica. Nesse sentido, surge a necessidade de criar serviços bem preparados que forneçam acompanhamento cuidado, “dimensionado e vocacionado” antes, durante e depois do processo. Tem que haver “instalações adequadas”, “uma equipa multidisciplinar“, “experiente”, “dedicada apenas à área e outros profissionais que têm de intervir”, afirma, sublinhando que isto é “só o básico”.

Durante o seguimento, o utente recebe uma atenção cuidada e a vários níveis. “Todos os doentes inaugurais são avaliados por psicólogo, nutricionista, assistente social (e o serviço social é aqui fundamental)”, diz. Sublinha ainda que, para um bom acompanhamento, é necessário haver acesso ao vasto leque técnicas de tratamento, que vai desde os meios de diagnóstico à quimioterapia, passando pela radioterapia, técnicas cirúrgicas, entre outros.

“Os tumores são diferentes, portanto os tratamentos devem ser adequados ao tipo de tumor”, reitera. Mas, acima de tudo, destaca que “uma criança é um ser em desenvolvimento, que continua a precisar de ser criança“, independentemente de estar doente. 

Há que falar sobre cancro infantil – não só com os pacientes, mas com a população geral

Além do cuidado e atenção dirigida aos doentes (sejam, ou não, terminais), Maria Bom-Sucesso recorda que é preciso dar suporte aos sobreviventes, às famílias e apoio no luto. “A gente acha sempre que já aprendeu a falar, mas não. Comunicar más notícias aprende-se. Comunicar com as pessoas aprende-se e tem que haver um investimento nessa formação”, afirma.

Deve-se dizer, informar e repetir amanhã se for preciso. Tornar a repetir, estar disponível para dúvidas“, enfatiza. Acima de tudo “dizer a verdade, sempre a verdade”. Lembra, no entanto, que é crucial considerar as circunstâncias. Empatia e humanidade são características fundamentais para adaptar o discurso “àquilo que estão capazes de ouvir naquele momento”, “ao estado emocional, à idade e maturidade de quem se tem à frente”. 

Ao JPN, a especialista de pediatria oncológica diz sentir falta de mais iniciativas que tratem o tema e destaca a importância das associações e redes de apoio que já existem para famílias e doentes. “Quando estamos a falar de oncologia pediátrica, falamos de um número pequeno. E um número pequeno normalmente não é mobilizador de recursos“, explica. A partir do ponto em que há conversa, “percebemos qual é a nossa realidade, quais são as lacunas, onde é que precisamos trabalhar”, diz.  Há que parar de evitar, não fugir e tentar sempre aprender mais.

Artigo editado por Paulo Frias