Na aldeia açoriana de Rabo de Peixe “nunca nada de jeito acontece” – ou assim era até, em 2001, ter dado à costa um carregamento pesado (nada mais, nada menos, que meia tonelada) de cocaína. É sob esta premissa que surge a série de mesmo nome, “Rabo de Peixe”, com a realização de Augusto Fraga, produção da Netflix e estreada a 26 de maio deste ano. 

Quem diria, Portugal, que teríamos uma segunda produção portuguesa da gigante do streaming? Além de, obviamente, “Glória”, estreada em 2021. Mais recentemente, “Pôr do Sol”, apesar de não ter sido produzida pela plataforma, lá se encontra, desde 2022 – pelo que também podemos incluir na lista, como membro honorário.

“Rabo de Peixe” trata-se de um dos dez projetos que venceu o concurso de argumentistas promovido pela Netflix, em parceria com o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). E valeu o investimento: desde que saiu já se tornou num dos títulos mais vistos a nível mundial, integrando inclusivamente o top 10 em mais de 35 países.

 O espelho de uma camada social mergulhada na pobreza

Segundo as estatísticas, esta aldeia, localizada no arquipélago dos Açores, em São Miguel, é a mais pobre de Portugal – um fator que se soma à propensão natural das ilhas para desastres naturais, pela alma vulcânica.

O enredo é baseado em factos reais – pelo menos “vagamente”, saltitando entre situações hiperbolizadas e retratos de contexto reais. Com um derrame de droga praticamente à porta de casa, Rabo de Peixe viu uma oportunidade e decidiu aproveitá-la. Reza então a lenda que a cocaína náufraga foi recolhida pelos habitantes da ilha, tendo posteriormente servido para tudo aquilo que se pode imaginar: desde substituta de farinha para fritar o peixe até comida para os porcos – tudo mesmo.

Fora isso, houve quem visse no surreal acontecimento uma forma de lucro. Passemos então, exclusivamente, à trama da série, que acompanha um grupo de jovens. Eduardo (José Condessa) perdeu a mãe e o pai, pescador, precisa de ser operado aos olhos. Sílvia (Helena Caldeira) é filha do mafioso da aldeia, Arruda (uma figura icónica trazida por Albano Jerónimo e marcada pelas intervenções bastante cómicas), e nunca teve um pai presente. A esta dupla juntam-se Rafael de Medeiros (Rodrigo Tomás) – ex-jogador do Santa Clara, com a camisola número 9 -, Bruna (Kelly Bailey) e Carlinhos (André Leitão). Todos querem uma oportunidade para sair dali, querem algo melhor para a sua vida e para aqueles que na sua vida estão. 

“A vida é só um empréstimo, e nós estamos cá de passagem”- é assim que Eduardo se convence, e ao grupo, a entrar no negócio da droga. Porém, não podia ser tudo fácil. Não é só apanhar meia tonelada de cocaína e vendê-la – existem complicações, e perigos, pelo caminho. 

A produção da Netflix, excedeu expectativas, ainda que haja quem reaja com choque – segundo muitos espectadores, cinge-se à aclamação da droga e a um uso excessivo de palavrões. Além de eternizar a beleza inegável dos Açores, capta na perfeição a simplicidade das casas tradicionais portuguesas, revestidas de azulejos. Aliás, se há uma coisa bem presente são as “portuguesices” de um canto recôndito, esquecido no mar: as rulotes baratas onde se para para comer, beber um café ou uma cerveja, o estado degradado das lojas e das vidas daqueles que na terra habitam. 

Este retrato também se estende às pessoas e ao diálogo. De facto, o infame palavrão é empregue à boa moda portuguesa – isto é, utilizado como uma interjeição, tão natural como uma bengala discursiva e nem sempre insultuoso. Pena é a pronúncia açoriana não aparecer tantas vezes quanto devia.

Mas nesta construção de personagens há exceções – falando agora na figura de um “mafioso português”, custa a crer a alguém que se orgulha nas suas origens que existe este nível de falcatrua violenta no nosso país

A série mistura mistura português com inglês, em honra da terra que está tão perto da América, – e, nesse sentido, destaque-se Pepê Rapazote enquanto narrador -, e até italiano. Contudo, estes saltos entre idiomas – que parece ser algo muito mais característico da geração mais nova do que daquela que viveu o início do século -, não estão totalmente bem construídos e nem sempre soam bem ao ouvido. 

As marcas de produção da plataforma de streaming são bastante evidentes, o que acaba por fazer com que todo o seu conteúdo seja massificado, perdendo traços singulares e únicos que poderia ter. De facto, assemelha-se um pouco a outro título da Netflix – “Outer Banks”.  Tirando isso e uns efeitos visuais um pouco duvidosos, em situações como naufrágios ou tiroteios, não desilude.

Fale-se também do elenco que sustenta estes sete episódios: o protagonista, José Condessa, executa excelentemente a sua representação como Eduardo – ainda que pudesse ser uma personagem um pouco mais extrovertida. No entanto, não está nem de perto tão bem caracterizado como Rodrigo Tomás, que interpreta Rafael de Medeiros. Há, de facto, uma parada de talento português, somando à lista (além dos papéis principais) os nomes de Maria João Bastos, Daniela Ruah, Afonso Pimentel, Adriano Carvalho, Marcantonio Del Carlo, Salvador Martinha e muitos mais.

Se não decidirem ver “Rabo de Peixe” pelo orgulho nacional (e deviam), podem sempre aproveitar para se deleitar com as expressões que só os portugueses sabem usar e com as paisagens maravilhosas da ilha que tanto prezamos. Mais real que aparecerem escuteiros no meio do mato a encontrar pessoas inconscientes, não pode ficar. 

Mas afinal, o que aconteceu realmente em Rabo de Peixe? 

Para quem tenha dúvidas, é factual que centenas de quilos de droga chegaram à ilha piscatória com pouco mais de 7500 habitantes. E foi usada para panar o peixe – nisso e noutras banalidades como substituto de açúcar para meter no café. Aliás, existe a teoria de que a meia tonelada apreendida pela Polícia Judiciária, valor de referência utilizado na série, não era tudo o que o barco que naufragou trazia

Algumas das mortes mostradas na série são também verídicas. No mês que sucedeu o evento, registaram-se 20 óbitos e dezenas de internamentos, segundo o jornalista Nuno Mendes, do “Público”. Antoni Quinzi, suspeito pelo carregamento, foi o único detido pela polícia – tendo inicialmente escapado, mas apanhado logo quinze dias depois, sendo condenado em Coimbra a dez anos de prisão. O relato da sua fuga é tão português que só podia ser verdade.

A aldeia Rabo de Peixe ainda hoje sofre consequências devido ao aparecimento da droga na comunidade. Em 2001, a cocaína era tão pura (80%) que causou logo efeitos colaterais nos seus consumidores. Hoje em dia, muitos continuam viciados.

Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira