Foi com um conto, uma dramaturgia e uma antologia de crónicas que se iniciaram, na quinta-feira (22), os lançamentos de livros do Correntes d´Escritas deste ano. No conjunto do festival, serão apresentados cerca de 40.

Um conto, um texto dramatúrgico e uma antologia de crónicas. Desta matéria se fez a primeira vaga de lançamentos de livros do Correntes d´Escritas que incluiu “O Vestido de Noiva” de Filipa Leal“Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco” de Maria Quintans e “Um Quarto Com Vista Sobre O Meu Quarto”, de Cláudia Lucas Chéu.

O lançamento dos livros, que decorreu na tarde de quinta-feira, na sala de ensaios do Cine-teatro Garrett foi enriquecido por uma sessão, em que escritores e convidados proporcionaram uma conversa aberta e intimista ao público e ofereceram uma espécie de prefácio ao vivo das obras

As inquietudes de Filipa Leal

Após 20 anos a escrever poesia, Filipa Leal lançou-se no terreno do conto com “O Vestido de Noiva” que revela ter sido “como um desmaio de verão”. Apesar de ter uma capa azul-celeste, Ana Margarida, editora da Relógio d´Água, diz não se tratar de um livro “tão celeste assim”. “O Vestido de Noiva” é uma viagem através de “incompreensões”, “inquietudes” e alguns “buracos fundos”. “São emoções” que preenchem este conto e que fazem com que tenha “muita vida lá dentro”, afirmou Ana Margarida.

A escritora acredita ter criado um ladrão ambíguo. “É um ladrão de identidades e de corações, também. A própria sociedade [está] aqui talvez representada por uma personagem-tipo. Uma mão conservadora, autoritária, cruel que rouba o futuro do filho, que lhe rouba a identidade, a hipótese de ser quem era”, referiu.

As pessoas que habitam este livro formam uma “tribo urbana”. São pessoas que jogam paddle, usam Tinder e comem gaspacho de abacate. E, então, o conto traz a vida para as páginas: medos e equívocos cómicos que não vão ser tão cómicos assim, aparências que advêm da tentativa obsessiva e partilhada de pertencer, a ilusão entre o vermos para crer ou crermos para ver.

De acordo com Ana Margarida, um dos aspetos que está presente no conto é a ideia de estarmos todos “irremediavelmente sós” ainda que “nos vejamos sempre através dos outros”. A nossa história pessoal acaba por ser a nossa história coletiva, ideia trazida pela referência a um escrito de Tolstói: “Se queres ser universal, pinta primeiro a tua aldeia”.

O livro está repleto de simbolismos e referências, sendo uma delas ao famoso filme “Janela Indiscreta”, dirigido por Alfred Hitchcock. Há algo que o livro e o filme partilham: o travelling. Enquanto que Hitchcock fá-lo através de janelas devassas, o livro fá-lo através de páginas que vagueiam por cada personagem. Ana Margarida equiparou a um drone que passa e quase dá indicações cénicas dando a ilusão de um guião. Nesta lógica de filme, a escritora revela que se sente mais “realizadora do que e escritora deste livro”.

Ana Margarida revela algumas ideias finais: há uma “celebração da amizade”, ainda que viver seja “não perceber nada do outro, viver e errar e, depois, entender mais erradamente. E, depois, mais erradamente ainda. E é assim que sabemos que continuamos vivos”.

“Há um célebre conselho atribuído a Tolstói: se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. O que Tolstói não calculava é que a aldeia se tornaria universal sem que sequer a pintassem. Falta nos hoje porventura uma aldeia singular sem universalidades. Uma aldeia que um artista pudesse pintar e com ela se surpreender: “Reparem é a minha aldeia. Vocês nunca viram nada assim, pois não?” e o universo diria “Não. É tão diferente de tudo a tua aldeia.” O universo ficaria todo contente e tão surpreendido com aquela obra. Neste século do Tinder e relações virtuais há duas perguntas que podíamos fazer em quase todas as aldeias universais. E vocês? Estão felizes juntos? E tu? Estás feliz sozinho? A vida contemporânea num certo mundo de hoje, é hoje mais do que nunca uma dança das cadeiras. Senta-se quem for mais rápido quando a música para.” Excerto do livro “O Vestido de Noiva”.

Filipa Leal escreveu “O Vestido de Noiva” para “detetives leitores” e sente que, com este conto, de alguma forma, realizou um filme num livro. “Enquadrei, fui diretora de fotografia, argumentista, fiz a banda sonora”, referiu. A escritora terminou a apresentação, dizendo “não se não falhei um filme, mas espero ter acertado um livro”.

Filipa Leal nasceu no Porto em 1979. É autora de livros de poesia como “Vem à Quinta-feira” e “Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano”. Foto: Carlota Nery/JPN

Há Bergman em todos nós

A morte, o silêncio e o medo sentam-se à mesa de Bergman e neste encontro revela-se tudo muito humano. Tem como mote uma frase do filme “A ilha de Bergman”, em que o realizador surge diante da câmara e diz: “Os demónios não gostam de ar fresco, eles gostam mais que fiques na cama, com medo.” Os demónios são dúvidas, inseguranças, incertezas, elementos que questionam a sua própria existência, função e importância. 

Espaço de fragilidades e vulnerabilidades, este livro é uma psicanálise. “Sem os demónios não há criação”, lê-se no livro. Para a autora os “demónios são os medos, os silêncios, a morte, Deus também. Deus é um demónio”. O medo surge como impedimento da perceção das coisas belas.

A autora revela que Bergman sempre a acompanhou desde muito nova. “Lembro-me que via os filmes dele com 19 anos no cinema Londres, em Lisboa. Ia ver e não percebia nada. Mas aquilo era qualquer coisa de muito intenso. Sentia uma coisa qualquer no peito. O homem quer dizer qualquer coisa. Mas o quê?”, recordou.

Com a idade e a experiência, a autora foi caminhando no sentido do entendimento e, hoje, compreende que “havia qualquer coisa nele” que era dela “e de todos nós.”

Bergman, numa entrevista, diz ter perdido o medo e o pânico infantil da morte quando realizou “O Sétimo Selo. Maria Quintans escreveu “Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco(Edições Humus), mas o medo não a abandonou. No entanto, é encara-o com a naturalidade que advém da aceitação. Pelas palavras da escritora, “este medo é e será sempre normal, natural e humano”.

A peça escrita por Maria Quintans vai estrear em abril no Teatro São Luís, em Lisboa, com direção de Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu, a senhora que se seguiu nos lançamentos desta quinta-feira.

A dramaturgia de Maria Quintans vai subir ao palco do Teatro São Luiz, em abril. Foto: Carlota Nery/JPN

Crónicas “entre a realidade e a literatura”

“Um Quarto Com Vista Sobre O Meu Quarto” (Companhia das Ilhas), de Cláudia Lucas Chéu, reúne histórias de diferentes mulheres que são muitas, mas podiam ser também uma só. 

O livro abre com o prefácio de Helena Vasconcelos: “Quais são os seus anseios? Qual é a sua luta? Como é que nasce, vive, se transcende? O que a leva a ter filhos, a cuidar deles e a sofrer por eles? Como lida com o envelhecimento? Com a transformação do corpo? Como recupera de relações cruéis, de separações dolorosas? Como procura o luxo da solidão, do espaço onde poderá pensar, respirar?”

Dentro do livro, encontram-se títulos como: “Escrevo Por Vingança à Morte”, “Mercado dos Segredos”, “Pés Descalços Não Podem Ler”, “Queda para Cair” e “Calhou-me em Fantasia O Milagre da Virgem Maria”.

Cláudia Lucas Chéu (1978) é escritora, cronista, contista, poeta, dramaturga e argumentista. Foto: Carlota Nery/JPN

Neste exercício de autoficção, “entre a realidade e a literatura”, fala-se da vida, da morte, do sonho, do silêncio e do grito, da luta, mas também do amor. Os textos retratam o desajuste, mas também a confiança e a determinação. Trata-se de uma antologia de crónicas escritas pela autora para o suplemento P3 do jornal “Público”, entre os anos 2020 e 2023.

Editado por Inês Pinto Pereira