Como é que nos relacionamos com o nosso tempo? Como é que escrevemos para pessoas que já nasceram com um smartphone no bolso? Foram estas questões que o Visões Úteis quis responder em mais uma tentativa de expansão da escrita para performance, não fosse esta já uma característica do coletivo artístico conhecido por gostar de explorar outro tipo de relações entre a produção artística e o espectador.

Daí surgiu a ideia de criar uma peça que se desenrola em tempo real durante duas semanas (de 3 a 17 de junho), em que o público vai seguindo uma de duas perspetivas sobre uma mesma narrativa: a de duas pessoas, deslocadas do seu contexto familiar, a trabalhar na “Scroll”. Antes que se questione, “Scroll” é tanto o nome da peça como da empresa que faz parte da narrativa ficcional. É, no fundo, um negócio de entregas que vem concorrer com empresas do mundo real como a Uber Eats ou a Glovo, levando ao limite esse modelo de negócio.

Escrever sobre a “Scroll” obriga-nos, desde logo, a fazer uma ressalva: é preciso explicar que a peça não acontece num teatro, a uma determinada hora, onde as pessoas se podem deslocar. É, sim, uma série de 15 episódios, acessível através de uma aplicação gratuita, que o leitor pode descarregar para o seu smartphone na loja de aplicações da Apple ou da Google.

O espetador pode, assim, ser notificado das atualizações diárias destes conteúdos. Caso não tenha assistido a todos os episódios, eles ficam também guardados cronologicamente na aplicação, podendo ser acedidos mais tarde.

“A narrativa é acompanhada através da visualização de vídeos feitos pelas personagens e através do modo como as personagens comunicam nas redes sociais”, explica Carlos Costa, diretor artístico, “de maneira que o consumidor não consome apenas a entrega do produto em si, mas também a própria pessoa que entrega”.

Além de escrever para teatro, a companhia teatral Visões Úteis fá-lo também em outros formatos híbridos, explorando sempre a maneira como os artistas se relacionam com o seu público e questionando o sentido do próprio trabalho. A própria autoria de “Scroll” é fragmentada. “Há três pessoas que assinam a dramaturgia e que depois a partilham, a dada altura, com alunos de uma Pós-Graduação em Dramaturgia no Instituto Politécnico do Porto”, acrescenta Carlos Costa. Já as personagens, interpretadas pelos atores Gilberto Oliveira e Catarina Gomes, foram escolhidas num casting tradicional.

O Porto serve de cenário a toda a narrativa. Na ficção, é necessário que o candidato a trabalhador esteja disposto a abrir as suas redes sociais para que depois a “Scroll” possa partilhá-las com o cliente. Isto para quê? “Para que o cliente possa ter a certeza de que sabe o que se passa, de que tudo é transparente e de que a pessoa que vai fazer a entrega é alguém com quem tem empatia”, explica.

Por isso é que em “Scroll” há uma visão e um interesse em tratar as relações sociais e de consumo. “Este modelo de trabalho, em que o privilégio do consumidor é feito à custa dos trabalhadores, está a ganhar cada vez mais adeptos. Os trabalhadores de uma situação são os consumidores de outra, e vice-versa”, afirma.

Os trabalhadores desta série ficcional têm “atitudes muito diferentes em relação à atividade que desenvolvem”. Isto “até ao dia em que um cliente muito especial solicita um serviço inesperado… um bizarro pedido que ameaça a própria estrutura da empresa e empurra os trabalhadores para uma ação radical”, desvenda ainda a companhia no texto de apresentação do projeto.

Até ao dia 17, há um novo episódio por dia. Até aqui, o balanço é positivo: “Ontem [quarta-feira] estávamos em primeiro lugar nas tendências ‘Arte e Visões’ da loja Google e em nono lugar nas tendências ‘Entretenimento’ da loja Apple, que é assim uma coisa muito cool de dizer para uma companhia de teatro do Porto”, rematou Carlos Costa, ao JPN.