A moda do Porto não deixa de espreitar por entre as melodias. Mas há muito mais a definir a chegada, concreta e marcada, de Cláudia Pascoal ao cenário musical português. A primeira incursão pelos discos chegou no passado dia 27 de março com o tão somente “!”.

O que começou por ser “Música De Um Acorde” (antes sequer do projeto de um álbum) desenrolou-se em muitos – e diferentes – acordes reveladores. Privar com o primeiro disco da artista é fazer uma viagem pelo que é ser Cláudia Pascoal; mas também pelo que é ser qualquer um de nós, simples e constantes, com algum humor à mistura.

A carreira profissional começou fora do mundo da música. Natural de Gondomar, Porto, começa a cantar munida da sua guitarra (mais tarde o ukelele viria para ficar) aos 15 anos. A sua formação também não o adivinha: é licenciada em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design (ESAD) e mestre em Produção e Realização Audiovisual pela Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), tendo agora um curso em Produção Artística com especialização em ouriversaria.

Entre divagações pelo mundo do entretenimento, teve o vislumbre de uma carreira na música ao participar em concursos televisivos. Em 2018, chegou o reconhecimento do público ao tornar-se a representante portuguesa no Festival Eurovisão da Canção desse ano (que na altura foi jogo em casa). O palco de Lisboa precedeu os que se seguiram, numa carreira em crescendo e que agora se aumenta com a edição de “!”.

“Ter e Não Ter” e “Viver” foram os dois primeiros temas de trabalho do disco; o mais recente é “Espalha Brasas” e, em jeito de comemoração de lançamento, a já célebre “Música de Um Acorde”. Cláudia não vem sozinha, a artista não se inibiu de chamar as suas maiores inspirações na hora de cumprir o sonho. Tiago Bettencourt, Samuel Úria, David Fonseca e Nuno Markl juntam-se a composições da própria em conjunto com  Joana Espadinha, Miguel Lestre, Pedro da Silva Martins e Luís José Martins.

O JPN esteve à conversa com a artista (através de telefone, porque os tempos assim o obrigam) para perceber o que é que este pop mascarado de indie, com odes à boa música portuguesa, tem realmente para dizer.

JPN: Começar, talvez, pela pergunta menos óbvia – ou se calhar mesmo a mais óbvia. O nome do teu álbum é um simples “!”. O que significa este ponto de exclamação?

Cláudia Pascoal: É sempre uma complicação. Desde o que decidi que ia ser o ponto de exclamação percebi que ia ser um desafio. Mas acho isso giro porque cada um tem a sua interpretação, na verdade. Eu não queria que fosse uma palavra ou um título de uma música. Queria que fosse um statement do que sou agora e quero-me afirmar: sem programas de televisão, sem músicas dos outros. Um produto mesmo original e criado a partir da minha personalidade.

Às vezes chamas-lhe de blah.

Sim, de vez em quando. Depende dos dias [risos]. Isto porque há uma criatura imaginária, a rodar pelas minhas redes sociais, que tem esse nome. E parecia-me – aliás, propus, na altura da decisão com a minha equipa: para mim, seria esse o nome do álbum, blah. Mas eles acharam que seria parvo demais, portanto o ponto de exclamação pode ser traduzido em blah, “na boa”.

Esse som, o blah, pode ser muita coisa. No entanto, aqui, é tão somente um resumo de ti própria?

Acho mesmo que sim! [risos]

Este teu primeiro disco é, por isso, um reflexo daquilo que te compõe enquanto ser pensante e sentimental?

Pelo menos é um resultado do crescimento que tive nestes últimos dois anos, a procura de uma personalidade musical. Estou muito contente porque acho que define muito bem aquilo que sou agora. Tenho a certeza que daqui a uns anos, se fizer outro álbum, vá ser completamente diferente. Mas agora é mesmo o reflexo do meu “eu” agora, da minha personalidade. O meu objetivo principal era ter uma identidade original enquanto artista, e não ser um produto que reflete outra pessoa, outro programa. 

Penso que essa essência, quase como um reflexo, fica logo à vista na abertura do álbum. Dei por mim a dizer, enquanto ouvia, que isto era a coisa mais Cláudia Pascoal que poderias ter feito, que te resumia perfeitamente. O facto de abrires um disco de estreia com uma faixa que na verdade não é uma canção revela mais de ti e expõe-te mais do que começar com uma música propriamente dita?

Acho que sim. Porque, pelo menos na minha carreira profissional, eu não parti da música. Primeiro fui para o entretenimento, criar conteúdos e ser apresentadora, tudo isto antes de cantar. Por isso achei muito giro começar nesse reflexo. Sou só eu, a comunicar com alguém. Neste caso o Nuno Markl, que faz isso muito bem, porque diz coisas sérias mas de uma forma muito parva. Acho que tinha de ser mesmo assim.

Cláudia Pascoal

Foto: Universal Music/D.R.

Essa junção de identidades e conceitos que te formam acabam por se espelhar ao longo das 12 faixas deste Blah. Começas agitada, passas para uma serenidade envolvente e, no final, explodes em mais energia. Quiseste desta forma mostrar que a Cláudia Pascoal sabe fazer várias coisas, que podem ser muito diferentes umas das outras?

Talvez… Nem pensei muito sobre isso. Mas talvez sim, tinha essa necessidade de mostrar essa dualidade que há em mim. Mas na verdade acho que foi a onda. Tentei imaginar sempre uma onda física, que queria transmitir ao público e acho uma tradução muito própria de mim. Normalmente dou a parecer que sou uma pessoa altamente feliz e sempre muito brincalhona, meio desenho animado, mas na verdade acho que tenho também uma parte bem adulta e muito introspetiva, que resulta muito bem nas músicas mais densas que tenho no final do álbum. Mas depois dou por mim a dizer “ah, não, afinal sou parva outra vez”. Acho que é mesmo a tradução de um dia como Cláudia Pascoal. Tropecei nisso, eu acho.

Mesmo assim, apesar dos registos diferentes, há uma linha guia que contorna o disco e deixa uma sonoridade comum, um fio condutor da tua essência em cada canção. Esta é a forma, consciente ou não, de deixares um pouco de ti em cada canção? É ouvir e perceber que é uma música da Cláudia Pascoal.

Acho que isso é a tradução do trabalho feito por mim e pelo Tiago Bettencourt. A parte da produção é essencial num álbum, não só para criar as músicas, mas realmente para criar esse tipo de identidade musical. Fico contente porque na maior parte das músicas nunca se perde o meu instrumento musical, aquele em que eu criei as músicas todas, o ukelele. Há sempre várias back vocals minhas, há várias coisinhas que não se perdem e permanecem mesmo nas músicas, das mais parvas às mais sérias. Esse era um fator muito importante para mim e foi a parte que mais demorou. Estes dois anos foram essa construção, essa procura de como encaixar as músicas todas numa caixinha de cartão.

O Tiago Bettencourt produziu o teu álbum. Também escreveu “Espero Por Ti Lá Fora” e é possível perceber o toque dele nesta canção. Como foi trabalhar com o Tiago? Ele compreendeu tudo o que querias fazer neste disco?

[pausa] Ele foi compreendendo. Daí dois anos de trabalho [risos]. No início ficou confuso, eu própria o estava, porque não sabia bem como traduzir o que queria fazer. Foi um trabalho conjunto ao longo desses dois anos incríveis. Ele é uma pessoa muito paciente e para lidar comigo é preciso mesmo muita paciência. Sentámo-nos muitas vezes no estúdio do Tiago e fizemos as músicas todas só os dois em maquete. Só depois de estarem todas gravadas é que fomos para estúdio com os músicos.

Como surgiu a oportunidade de trabalharem juntos?

No início foi-me proposto pela Universal Music fazer o álbum. Depois de cantar “O Jardim” tantas e tantas vezes fiquei viciada em cantar em português e queria começar um projeto mesmo do início com músicas em português. O Tiago mostrou-se interessado, muito “deixa-me lá ver as músicas que a miúda tem”. Foi tudo muito natural: marcamos um pequeno-almoço, que foi horrível porque odeio acordar de manhã, ele ouviu as minhas músicas, achou que tinha potencial e partimos daí.

Cláudia Pascoal

Foto: Universal Music/D.R.

Isto do teu toque em cada canção tem especial expressão quando tens vários convidados no disco. Vários temas são compostos por ti, mas outros não. Alguns dos artistas têm um registo diferente do teu e, embora se consigam perceber esses elementos, são canções muito tuas. Como se faz para que uma canção passe a ser nossa?

Acho que é pegar nela, basicamente desfazê-la toda e começar pelo básico: aprender a tocar a música num instrumento e, a partir daí, interpretá-la à minha maneira. Algumas músicas foram mais difíceis que outras, isso de passá-las para mim. Por exemplo, o David Fonseca trouxe-me maquetes completamente produzidas, com bateria e baixo e guitarras e vozes. Então esse exercício foi muito difícil porque o produto que ele me enviou já estava tão completo e tão bem feito que foi complicado desfazê-lo e criar algo do zero. Mas achei mesmo necessária essa desconstrução. Aliás, a música mais contente que tenho no meu álbum, a “Mais Fica Pra Mim”, era música altamente triste e pesadíssima, em pianos e violinos, não tinha nada a ver. Acho que foi das partes de fazer este álbum que mais me fez crescer.

Uma das canções, “O Soldado”, composta pela Joana Espadinha, é sobre uma história que não conhecias e não tinhas ligação emocional. Achas que é importante extrapolar os nossos próprios campos de visão e assumir outras identidades, outros corpos, para nos tornarmos mais completos pelo caminho?

Não diria mais completos. Foi simplesmente algo engraçado de fazer, porque detesto que tudo gire à minha volta. Apesar de achar que não passa essa imagem, não gosto disso – foi por isso que criei a personagem blah. A Joana Espadinha escreveu-me duas músicas; uma era sobre a minha personalidade e a outra “O Soldado”. Disse-lhe que ia pegar só nesta sobre o soldado porque me apetece cantar algo que não tenha nada a ver comigo e agora é uma das que mais gosto. As pessoas estão a gostar e acho uma música fundamental no álbum para respirar um bocadinho de mim própria.

Acabaste por te rodear de pessoas, alguns amigos, outras influências e inspirações para ti. Dessa forma, rodeando-nos de pessoas que nos podem complementar, descobrimo-nos mais facilmente?

Sim. Acho que a música cresce com mais pessoas. Quando fazes um álbum muito sozinho… Aliás, isso é uma coisa em que não acredito. Ninguém faz nada sozinho, embora muitos digam que “o álbum é meu e só eu é que fiz” [risos]. Então esse foi quase o meu statement de revolta sobre essas pessoas. É sempre preciso pedir ajuda. A música pode ser muito boa, mas vai crescer muito mais quando chamas outras mentes para o processo criativo.

Mesmo assim, apenas uma das músicas tem outra voz cantada, a “Viver” – além da aparição do Nuno Markl e da exceção da “Música de Um Acorde”, da qual já vamos falar. O que é que te levou a trazer a voz do Samuel Úria para este “salto de fé” quase melancólico?

[risos] Eu sou muito fã do Samuel Úria, mesmo. Quando ele me escreveu a “Viver” foi um momento fundamental para mim. Estava meio perdida, a escrever músicas muito redundantes. A partir do momento em que ele me mandou essa música, comecei a escrever todas as canções que agora estão no álbum e que são de autoria minha. Foi quase um clique. Achei aquilo tão importante – mesmo a maquete que ele me enviou era totalmente homemade, mas sempre a imaginei cheia de vozes atrás, com várias tonalidades. Achei que esteticamente fazia sentido ter a voz de um homem na canção, para equilibrar as vozes agudas. Depois, porque não chamar o autor da música e ter a oportunidade de ter uma música com o Samuel Úria, que é inacreditável.

Apesar de trazeres estas companhias, escreveste cinco das 12 canções deste “!”. Como foi estar agora no papel de quem compõe e transmite estes sentimentos, alegres ou nem por isso, numa só canção?

Eu sempre escrevi as minhas canções de projetos antigos. Em português já foi mais complicado, lá está. É preciso ter cuidado para não ficar uma música fatela. Pôr “amor” numa frase é logo um statement gigante, é complicado. Escrevi estas músicas não com objetivo de “pronto, agora vou-me sentar e compor esta canção”. Não, depende das músicas. Na “Quase Dança”, por exemplo, tinha acabado uma relação amorosa e foi uma maneira de lidar com a situação – escrevi aquela música e achei-a tão parva que fiquei automaticamente resolvida [risos]. A “Tanto Faz” também, nesta estava meio revoltada com a sociedade e com a forma como as pessoas lidam com a vida… Sempre utilizei as músicas como forma de me resolver interiormente.

Em temas como “Espalha-Brasas”, o mais recente single do disco, acabas por falar na mulher e, por querer ou não, transmitir uma mensagem de empoderamento. Algo que se reflete no material visual do disco. Além de ser Cláudia, celebras o ser mulher e esse quebrar dos padrões de que falávamos?

Eu queria viajar um bocadinho por esses temas, mas que não fosse o tema central. Muitas pessoas falaram-me em “emancipação feminina” e pode ser, mas de uma forma leve. Apesar de assumir as mulheres e a mim própria, sendo uma música quase biográfica, queria que se refletisse para todo o tipo de relações.

Como falamos há pouco, este álbum é, talvez ao contrário do que se poderia pensar inicialmente, totalmente em português. Antes eras conhecida por interpretar temas de outros artistas, nomeadamente em inglês. A participação na Eurovisão, em que cantaste “O Jardim” da Isaura no nosso idioma, deixou-te alerta para um novo alento em cantar em português?

Completamente. Sempre ouvi música portuguesa e adoro músicos portugueses. Mas sempre achei que a minha voz a cantar em português ficava fatela porque tenho muita pronúncia do Norte e sempre achei que fosse algo negativo para mim. Na verdade, agora adoro. Há ali uma palavra ou outra que vai com a pronúncia e gosto, acho que me dá alguma identidade e tornou-se numa coisa de carinho. N’“O Jardim” há uma frase em que digo a expressão “ser maior” e as pessoas caíram-me em cima [risos]. Mas assumi a pronúncia, comecei a fazer covers em português e percebi que há muita mais magia em cantar na nossa língua.

No fundo, o festival trouxe-te, além de mais reconhecimento, este álbum. Até porque o começaste a compor ao longo de toda a jornada eurovisiva, não é verdade?

Estive muitas noites e muitos dias sozinha em hotéis. Na altura vivia no Porto e tive de me mudar para Lisboa, ainda temporariamente, e escrever canções foi uma boa forma de lidar com o tempo. Esta solidão – é toda uma situação muito peculiar. Poucas pessoas podem dizer que vão representar um país, ainda por cima no próprio país. Acho que aproveitei o momento para ter essa introspeção e trabalhar nessas questões.

Não posso deixar de mencionar o aspeto visual do teu disco, no qual trabalhaste com o Wandson Lisboa, que no fundo em muito se relaciona com as canções e todo o conceito. As imagens que o acompanham, das capas dos singles à do próprio álbum, são todas em cores primárias. Sozinhas são simples, mas juntas fazem algo maior. Era esta a tua intenção, mostrar que através da simplicidade se pode transmitir uma mensagem poderosa?

O Wandson nisso fez um trabalho incrível. Nós fizemos a sessão fotográfica e planeamos todo este conceito numa fase muito inicial, em que só existiam maquetes das músicas. Com o que o Wandson pôde ouvir, pensou logo que podíamos pegar nessa ideia de começar do zero para o crescimento e o “dar alma” às músicas. Pegar nas cores primárias e juntá-las de modo a dar vida ao álbum. É esse o conceito, o de crescer.

Agora que o blah deixou de ser só da Cláudia e passou a ser do mundo, qual é o sentimento? Já começas a pensar no que fazer a seguir ou queres saborear ao máximo e exclamar-te ainda mais pelo caminho?

[risos] Como tudo na minha vida, o que faço acontece sempre em situações peculiares. Lancei o álbum nesta época estranha no mundo, por isso não está a ser nada do que imaginava. Já estava a planear uma digressão, que foi adiada. Sempre imaginei que estaria agora a mostrar o álbum às pessoas ao vivo. Como não está a acontecer, estou a tentar mostrá-lo de forma diferente, com vídeos parvos nas redes sociais e tenho tentado mostrá-lo de uma forma leve. Se já estou a pensar num outro disco, que nem sei se vai acontecer? Claro que sim! Mas ainda quero saborear muito este álbum e quero que essa tour aconteça para o ano.

Voltando só ao início de tudo, na verdade para acabar. Ao colocares a “Música De Um Acorde” a fechar o álbum, cumpres um sonho, que se tornou um desafio e uma prova de que, de facto, conseguiste chegar até aqui. Quase ironicamente, fazes uma alusão ao início do próprio álbum, com a brincadeira com o Nuno Markl. Este tema aqui – é um relembrar de onde vieste e daquilo que percorreste até lançares esta tua exclamação?

Completamente. A primeira e única música que tinha quando me propuseram fazer o álbum era “A Música De Um Acorde”. Eles ficaram muito “está bem Cláudia, mas faz músicas a sério” [risos]. Mas não desisti até aceitarem pôr esta música no álbum. Foi uma luta – a indústria musical portuguesa não aceita muito bem este tipo de humor em álbuns. É um statement do que quero que o álbum seja: “cá estou eu!”. Se for muito chata as coisas acontecem; e aconteceu, tudo da forma que imaginava, reunir as pessoas que eu mais queria. Foi uma celebração, o fechar de um álbum.

Artigo editado por Filipa Silva.