A progressão cognitiva e psico-motora dos alunos pode ficar comprometida com o prolongamento do confinamento, mas os pais também estão a ser afectados, alerta uma psicóloga clínica ouvida pelo JPN.

Numa altura em que se começa a discutir a forma adequada de proceder ao desconfinamento, um grupo de especialistas enviou uma carta aberta ao Governo e ao Presidente da República, a pedir para reabrir as escolas.

Victor José Rodrigues, um dos subscritores da missiva intitulada ‘Prioridade à Escola‘, defende que é preciso “equilibrar os pratos da balança”. Temos de um lado o problema de saúde e do outro necessidades que também urgem, como a educação das novas gerações.

“O nosso pedido não é para abrir amanhã, é que seja uma reabertura planeada, organizada, com dados que nos permitam ver se é possível e se existe algum agravamento, e se houver poder dar um passo atrás”, clarifica o professor de Epidemiologia da Universidade de Coimbra.

Escola é essencial para a construção da autonomia

Confinados em casa e com as aulas a decorrer online, as crianças e jovens podem ver a evolução normal das aprendizagens ficar comprometida.

Irene Monteiro, mãe de três filhos ainda menores e psicóloga clínica no Hospital Fernando Pessoa, esforça-se para não ser catastrofista: “as crianças têm uma capacidade de aprender muito superior à nossa e portanto, quando tudo regressar ao normal, aquilo que desaprenderam podem voltar a aprender”, desde que lhes sejam criadas as devidas condições.

Contudo, não tem dúvidas em afirmar que o encerramento das escolas “está a afectar o desenvolvimento das crianças”.

A escola é um espaço fundamental de construção de autonomia da criança: a escola “separa as crianças das famílias no bom sentido”, permite-lhes ter acesso a outros “modelos e figuras educativas alternativas”, que promovem a sua independência e autoconfiança.

Parque infantil do jardim Paulo Vallada está encerrado ao público. Foto: Miguel Marques Ribeiro

Enquanto contexto estruturado, a escola permite a cada criança manter as suas rotinas (o comer, o dormir, o brincar, etc…) que são fundamentais para o desenvolvimento. Com o confinamento, as crianças estão sempre “no mesmo contexto repetitivo”, o que torna “mais fácil que as rotinas, os horários, se dissolvam”.

A importância do contacto com outras crianças

Confinadas em casa, as crianças são “privadas de um conjunto de estímulos que são fundamentais”. Na escola, elas “podem mexer-se, movimentar-se, interagir com o meio, explorar as potencialidades do seu corpo (coordenação, motricidade fina e grossa, orientação espacial, esquema corporal)”.

O facto de não existir convívio com outras crianças fora do círculo familiar é uma perda importantíssima, porque “as crianças aprendem muito umas com as outras”, a começar pela “aquisição da linguagem“, que é “o berço das relações, da capacidade de comunicar com os outros”. A dimensão cognitiva (atenção, memorização, concentração) também é afetada.

Para a psicóloga clínica e da saúde, ainda é cedo para avaliar o impacto que estes afastamentos prolongados virão a ter, mas é certo que “crianças com contextos familiares menos estimulantes verão essas aquisições ainda mais reduzidas”.

“A criança precisa de ver o rosto do pai e da mãe”

A pandemia está a ser um momento muito difícil para o equilíbrio psico-afetivo das crianças. “Há dois aspetos fundamentais na vida afetiva: o contacto físico e o contacto visual” e os dois estão a ficar comprometidos com a pandemia.

Muitas vezes, não só a criança está em casa, como se encontra ainda num contexto muito restritivo dentro da própria habitação, com ausência de contacto físico com os seus familiares e uso de máscaras.

A psicóloga alerta que, por estas razões, ainda que sem deixar de respeitar os parâmetros de segurança que sejam adequados, os pais devem “evitar ao máximo o uso de máscara em contexto familiar”, para que as crianças possam manter um contacto visual pleno e permanente com os seus familiares.

A ilusão de que o mundo é perfeito é essencial para o crescimento da criança

Nas suas consultas, a psicóloga procura transmitir aos pais a importância de as crianças até ao final do primeiro ciclo (nove/dez anos) “viverem na bolinha”. A pandemia traz uma sensação de perigo “constante e eminente”. Isto instiga na criança “uma sensação de insegurança que é devastadora do ponto de vista psicológico”.

A psicóloga clínica dá um exemplo: é normal que, a partir de certa altura, as crianças comecem a ter a perceção que os pais um dia vão morrer. A pandemia, porém, instiga essa sensação de forma permanente. As crianças percebem que há uma doença, que os pais e outros familiares podem ficar doentes e morrer, e mais: que eles se expõem ao perigo quando saem de casa para trabalhar ou fazer qualquer outra atividade.

Em idades superiores a situação altera-se, pois o adolescente “começa a ser capaz de relativizar as coisas”. As crianças, contudo, devem ter a ilusão, fundamental até certa idade, de que o mundo é perfeito e de que estão em segurança. É a partir desse sensação que se alicerça “a autoconfiança da criança”.

Casos de evitamento fóbico são cada vez mais frequentes

Ao seu consultório, no Hospital Fernando Pessoa, têm chegado situações novas e preocupantes:Nunca me tinha acontecido uma criança chegar ao meu consultório e não querer sentar-se na cadeira... porque pode apanhar COVID-19. Ou não querer tocar em certas coisas”.

As consultas com crianças e jovens  têm estado centradas em problemas de ansiedade decorrentes ou agravados com a pandemia: “A ansiedade é um contínuo”. Há situações que ser podem considerar normais e até profícuas “de um mal estar associado, por exemplo, à realização de uma prova”. Mas “depois temos reações fóbicas de evitamento” e essas são cada vez mais frequentes.

A prática de exercício físico é determinante para o desenvolvimento de jovens e crianças. Miguel Marques Ribeiro

A difícil missão de levar os filhos para a rua

“Proponho sempre aos pais que façam diariamente um passeio higiénico com os miúdos”. A psicóloga clínica pensava que os pais iriam ter dificuldades em manter as crianças em casa, mas neste fase passa-se exatamente o contrário: o difícil é convencer as crianças a sair de frente do computador. “Se pensarmos bem esta é uma consequência muito lógica, depois destes meses todos a pintar um mundo aterrador…”.

Os pais já estão a perceber que isto é “demais” até porque as famílias, mesmo as mais bem estruturadas, estão também a ser afetadas.

Estabilidade emocional das famílias em alerta vermelho

Irene Monteiro é também mãe de dois filhos com 3 e 14 anos e de uma filha com 12 e tem vivido na própria pele as dificuldades que lhe são relatadas pelos pais no consultório: “Nunca na minha vida me preocupei muito com os meus filhos ficarem doentes”, explica. “Normalmente são dois, três dias e aquilo passa. Mas agora dou por mim sem saber o que fazer. Está doente, não pode ir para a escola, tenho que ligar à DGS, no Centro de Saúde não me dão resposta, isto eleva o stress das famílias para níveis nunca antes vistos“.  

Os adultos têm menos disponibilidade para estar tranquilamente com as suas crianças, precisamente na altura em que elas mais precisam do apoio dos pais e restantes familiares.

Isto sem contar com o contexto social e económico altamente instável, que tem também um impacto indireto em toda esta situação: “Os pais temem pelo seu posto de trabalho, mas querem dar uma resposta aos filhos. Isto cria uma ambivalência interior nos pais muito grande. E uma culpabilidade, porque parece que não conseguem fazer bem nem uma coisa nem outra”.

Ensino online reforça a responsabilidade dos pais

“As crianças não nascem motivadas para ir para a escola, é a própria escola que, sendo capaz de desenvolver com elas uma relação positiva e estimulante, reforça ou não essa motivação”.

Pais e filhos usufruem do jardim Paulo Vallada, no Porto. O parque infantil encontra-se encerrado ao público. Miguel Marques Ribeiro

Em contexto de pandemia cabe, em grande medida, aos pais assumir o papel de motivadores, o que representa um ”desgaste enorme”, para além de constituir “uma motivação extrínseca” do ponto de vista das crianças, o que significa que elas fazem as tarefas por mera obrigação, sem reconhecer uma ligação dos trabalhos escolares com a experiência do seu dia-a-dia.

Dois confinamentos, duas realidades diferentes

No primeiro confinamento muitos pais estavam simplesmente sem trabalhar e não, como agora, em teletrabalho. Isto criou até um contexto positivo para algumas crianças, sobretudo as mais pequenas que “beneficiaram muito da atenção acrescida dos pais”.

Foi um momento privilegiado em que muitas pessoas deixaram de trabalhar. De repente, as crianças passaram a estar “em família com a atenção toda virada para elas, que é o que as crianças gostam”. 

Mesmo para a própria relação entre casal este tempo acrescido de convivência e de trabalho em equipa pode ter sido positivo para muitas famílias.

“Eu sei que também se fala muito dos divórcios e dos conflitos se agudizarem, e provavelmente nas famílias em que esses conflitos já existiam agudizaram-se”. Mas para as famílias em que a relação entre o casal “carecia de alguma convivência”, o confinamento de março-abril foi benéfico, sublinha Irene Monteiro.

Neste segundo confinamento, a experiência das famílias está a ser muito diferente: “Há muito maior dificuldade em conciliar a vida familiar com a vida profissional”.

A nova lei que permite que “os pais possam optar por teletrabalho ou por não trabalhar, auferindo ao mesmo tempo do valor total dos seus salários” é por isso positiva. “Acho que foi fantástico”, é uma “vitória” dos pais.

Artigo editado por Filipa Silva