Quando ouviu a palavra endometriose, Rita não lhe deu importância. Aos poucos e sem que as procurasse, histórias de mulheres com a doença vieram ter com ela. Pensou que o tema deveria ser explorado e resolveu fazer um documentário. “Se te convidasse a ouvir?” é um projeto real e o primeiro documentário português sobre a endometriose. Hoje é o Dia Internacional da Saúde Feminina.

“Jogo feito, nada mais… uma em dez. Nasci mulher. Nasci mulher e disseram-me: vai. Vai ser mulher, mais uma mulher. Cresce e não perguntes. Cresce! Acompanha o teu corpo. Afinal que corpo é este?” A frase que inicia o documentário “Se te convidasse a ouvir?” da produtora cultural Rita Moutela faz lembrar um monólogo de uma peça de teatro. A existência de uma voz inicial forte, capaz de captar a atenção de qualquer pessoa, abre o pano para o início da história. E esta é sobre a endometriose – doença crónica que afeta uma em cada dez mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo.

Susana, Carolina, Diana, Paula, Teresa e as duas Claúdias fazem parte desta estatística. Todas têm diferentes idades e percursos. Para Rita, era essencial mostrar esta diversidade não só pela história, mas por tudo o que existe à volta dela. “A questão de familiares, companheiros que não percebem. A Susana chega a falar muito de como dar o apoio a quem tem essa doença. Há muitos nichozinhos”, explica em entrevista ao JPN.

O que é?

A endometriose é uma doença crónica que se manifesta durante o período de menstruação e afeta uma em cada dez mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo. A origem é, por enquanto, desconhecida, mas há vários estudos que apontam para uma patologia hereditária que se manifesta em momentos de maior stress e de fragilidade do sistema imunitário.

Quais os sintomas?

  • Dores menstruais
  • Fluxo menstrual abundante
  • Dor lombar
  • Dor na relação sexual
  • Dor abdominal
  • Inchaço abdominal
  • Dores de intestino
  • Dor ao urinar e a defecar
  • Sangue na urina
  • Diarreia ou prisão de ventre durante o período menstrual
  • Dor lombar
  • Náuseas ou vómitos
  • Infeções urinárias recorrentes

Dores menstruais intensas ou dores durante a relação sexual são alguns dos sintomas desvalorizados não só pela sociedade, mas também pela classe médica. Afinal, dor menstrual e sexual é normal. E quando os sintomas também incluem infeções urinárias recorrentes, náuseas e vómitos ou dor a urinar ou a defecar, continua a ser normal?

A endometriose ainda é desconhecida para muitos médicos. O diagnóstico demora entre oito a 10 anos a chegar e, enquanto o resultado não chega, as mulheres atingem estágios insuportáveis de dor. Na grande maioria dos casos a solução é retirar o sistema reprodutor. “A Cláudia [Cadete] tem 28 anos, a Susana tem 36 e a Paula tem 40 e são três mulheres que já não têm o sistema reprodutor”, sublinha a autora do trabalho.

Rita sempre quis alertar para as más práticas que acontecem em muitos gabinetes de ginecologia. Tem 26 anos e já passou por elas, tal como uma vastidão de mulheres. Integra a estatística de quem marca uma consulta de ginecologia para perceber o corpo e sai de lá julgada pelas opções tomadas.

Uma conversa com a cabeleireira foi o estímulo necessário para que se desafiasse a realizar o seu primeiro documentário. “É aquela ida natural ao cabeleireiro. Acabas por olhar para a tua cabeleireira um bocadinho como a tua psicóloga e ela acaba por me dizer ‘eu também passei por uns horrorzitos na ginecologia, porque tenho endometriose’”. A palavra soou-lhe familiar e, por breves instantes, recordou-se de já ter pesquisado sobre ela. “Quando tu vais a um gabinete de ginecologia e não tens respostas para aquilo que estás a passar, vais ao doutor Google”, explica.

Percebeu que a doença que julgava ser banal e desprovida de interesse era, afinal, algo que merecia ser explorado. Pensou dá-la a conhecer através do teatro, mas pela primeira vez sentiu que o palco e a ficção não eram suficientes para expor esta realidade. Desafiou-se a realizar o seu primeiro documentário. Um documentário real com a duração de 1h48.

Rita é a autora do documentário “Se te convidasse a ouvir?” Rita Moutela

“Se te convidasse a ouvir?” é uma estreia para Rita e para o panorama audiovisual português que, até ao dia 6 de maio, não tinha nenhum conteúdo sobre endometriose. Apelida-o de artesanal e confessa que passou por várias transformações até chegar à fase final.

Começou por utilizar som e imagem das entrevistas virtuais. À medida que ia progredindo com a edição, mostrava-a. A reação era sempre a mesma — “Ah, coitadinha é tão nova!” Como apelar ao lado sentimental nunca foi o objetivo, optou por utilizar apenas as vozes e uma atriz que dá corpo a cada história e, desta forma, atribui-lhe uma linguagem mais poética.

Mas também aqui há uma diferença: a atriz não está a interpretar uma mulher com endometriose, “mas uma mulher que ainda tem alguma dificuldade em aceitar a sua menstruação, em aceitar ainda essa parte do corpo feminino”, explica. Com a nova edição, viu o sentimento de pena a transformar-se em empatia e a atenção ao que era dito aumentar.

A realizadora chegou até estas mulheres de uma forma que apelida de “muito randómica”. A vontade de falar sobre o tema ainda tabu sem sussurrar, o tradicional ‘passa a palavra’ ou a pesquisa foram formas que a levaram até cada uma destas histórias de contornos particulares. Susana criou a Associação MulherEndo — Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose —, Cláudia Cadete distingue-se pelo ativismo. Diana escreve no blog “Dramas de Primeiro Mundo”. E Carolina descobriu a doença há pouco tempo, quando estava a tentar engravidar. Não sabe o que vai acontecer, mas já aceitou o diagnóstico.

De todas elas, Rita recorda a conversa com Paula, ex-administrativa no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, em Aveiro, que conhece desde criança e, talvez, das últimas pessoas que esperava que tivesse endometriose. “Eu ia brincar para o hospital e ela estava lá sempre muito sorridente e nunca demonstrou estar mal”, recorda.

Durante a conversa descobriu que ao mesmo tempo que Paula lhe sorria, sofria com dores terríveis que só atenuavam quando levava o que descreve como uma “injeção gigante” e anestesia na zona da barriga. “Estar a ouvir isto e estar a lembrar-me como era estar com ela, o ter que colocar uma máscara e depois estar a ouvir todos os horrores por que passou por causa dos tratamentos de fertilidade foi muito forte. Foi um abrir de olhos, porque tu não sabes o que é que se passa à tua volta. As pessoas mais próximas de ti podem estar a sofrer horrores e tu nem notas.”

Rita espera que as dores que são encaradas como normais deixem de ser desvalorizadas. “Temos que mostrar à classe médica que não pode ser. Não podem andar a dizer que as dores menstruais são normais, que tens de ter filhos ou não sei o quê”, defende. A mensagem é a mesma para quem suspeita que tem endometriose, “para que quem não tem perceba que a dor do outro é real” e para quem desconhece a patologia.

No final, a mulher que até então não sabia lidar com a menstruação passa a saber fazê-lo. Vemo-la deitada na banheira. O sangue funde-se com a água que lhe cobre o corpo e é então que olha para a câmara e diz “E se eu te convidasse a ouvir apenas? Caminhas comigo agora?”

O documentário “Se te convidasse a ouvir?” está disponível no Vimeo pelo valor de 4 euros.

Artigo editado por Filipa Silva