Devido ao conflito da Ucrânia e às restrições à exportação de trigo nesse país e na Índia, o cereal tem escasseado no mercado fazendo o preço atingir recordes. Sendo o trigo “uma das fontes de alimentação mais importantes", estes problemas associados têm um "impacto brutal" na economia mundial e também na segurança alimentar, especialmente dos países mais pobres. O JPN conversou com o presidente da ANPOC, José Palha, e com a docente Isabel Dinis sobre as consequências que esta situação trará para todo o mundo. A esperança? Pode ser que as pessoas comecem a “olhar, de facto, para o setor agrícola como um setor estratégico”.
Com o mundo ainda a ver o conflito na Ucrânia, surge agora uma nova preocupação associada a um alimento basilar na alimentação da população mundial: o trigo. Desde restrições impostas na sua exportação a secas e alterações climáticas, são várias as razões que explicam a escassez do trigo, cereal que tem tido um aumento exponencial no seu preço. Com a insegurança alimentar a piorar graças à guerra na Ucrânia, este crescimento “brutal” do preço, como refere ao JPN o presidente da Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais (ANPOC), José Palha, poderá tornar a situação ainda mais grave.
Na passada segunda-feira (16), a cotação do trigo atingiu o seu recorde na Euronext Paris: 438,25 euros por tonelada. São “valores nunca antes vistos”, como confirma Palha: o preço do trigo já aumentou 40%, desde o início da invasão russa à Ucrânia, ou seja, 24 de fevereiro, de acordo com a agência Lusa. O último valor-recorde foi a 7 de março, em que o trigo estava a 422,50 euros por tonelada.
Para além do “aumento brutal do preço do trigo”, José Palha destaca que “os custos de produção também aumentaram brutalmente”, talvez até “numa proporção superior ao preço do trigo”. “Embora o trigo seja vendido muito mais caro, a margem que fica para o agricultor continua a ser basicamente a mesma que era antes desta escalada de preços”, refere o presidente da ANPOC.
Uma das principais razões apontadas para este crescimento exorbitante dos preços do trigo está associada à proibição de exportações de trigo (e outros cereais) em países como a Ucrânia e a Índia, dois dos maiores produtores mundiais deste cereal.
Bloqueio dos portos na Ucrânia é uma forma de a Rússia “se impor”
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, o porto de Odessa, o maior porto no país, tem estado bloqueado. Aí estão retidos 57 navios com mais de um milhão de toneladas de trigo e outros cereais, segundo a empresa de radiodifusão alemã DW. Já o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que visitou o porto, admitiu no seu Twitter que viu “silos cheios de cereais, trigo e milho prontos para exportação”.
In the port of #Odesa with @Denys_Shmyhal, I saw silos full of grain, wheat and corn ready for export.
This badly needed food is stranded because of the Russian war and blockade of Black sea ports. Causing dramatic consequences for vulnerable countries. We need a global response. pic.twitter.com/k8dz03d2Cj— Charles Michel (@eucopresident) May 9, 2022
Contudo, Odessa não é o único porto bloqueado na Ucrânia: os portos de Mariupol, Berdiansk e Skadovsk, no Mar de Azov, e de Kherson, no Mar Negro, foram todos fechados a 2 de maio, de acordo com o Observador.
Com o bloqueio dos portos ucranianos, a Rússia já impediu a exportação de cerca de 22 milhões de toneladas de cereais, afirmou o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenksy, num briefing com o primeiro-ministro português, António Costa, no último sábado (21). Nessa mesma conferência, Zelensky acusou a Federação Russa de roubar e de exportar as colheitas ucranianas. A denúncia do roubo tem ganho mais peso desde que a empresa norte-americana Maxar Technologies divulgou imagens de satélite de 19 e 21 de maio, que sugerem o carregamento de dois navios russos – Matros Pozynich e Matros Koshka – com cereais ucranianos.
Para Isabel Dinis, docente na Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Coimbra, especializada em agronomia e economia agrária, o bloqueio dos portos ucranianos, especialmente o de Odessa, corresponde a uma “estratégia de [a Rússia] se impor”, conseguindo “ter força e ter poder”. Estando “a sentir-se isolada”, a Federação Russa acaba por aplicar este tipo de “estratégias” para “pressionar o mundo” e a Ucrânia em si. “Não há melhor maneira de pressionar do que [utilizar} a alimentação e a sobrevivência das pessoas”, salienta Dinis.
Não há melhor maneira de pressionar do que [utilizar] a alimentação e a sobrevivência das pessoas.
Na verdade, tanto a alimentação da Ucrânia e do mundo inteiro será fortemente afetada por estes bloqueios. O país do leste europeu e a Rússia contribuem juntos para 28% da produção mundial de trigo, assim como 29% de cevada, 15% de milho e 75% de óleo de girassol, de acordo com a “The Economist”, e, este ano, a Ucrânia terá “apenas dois terços da sua produção habitual”, como refere a Sic Notícias. Isto traz não só “devastação económica na Ucrânia”, como também “ameaça com fome” o resto do mundo.
“Desbloquear [o porto de] Odessa é tão importante como fornecer armas à Ucrânia”
Na conferência de Davos, o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP, na sua sigla original), David Beasley, acusou a Rússia de fazer uma “declaração de guerra à segurança alimentar global” ao bloquear os portos ucranianos. Apesar de “não resolver o problema”, Beasley admitiu que a abertura do porto de Odessa permite “criar estabilidade num mercado alimentar volátil”. Andrei Stavnitser, responsável pelo maior operador de terminal privado da Ucrânia, TransInvestService, partilha a mesma opinião, afirmando até que “desbloquear Odessa é tão importante como fornecer armas à Ucrânia”.
No início do mês, a União Ucraniana de Industriais e Empresários (USPP) já apelou às organizações internacionais para abrirem “um corredor que permita a exportação do grão bloqueado nos portos” ucranianos, como refere a Sic Notícias. No Fórum Económico Mundial, a 23 de maio, a vice-primeira-ministra da Ucrânia, Yulia Svyrydenko, citada pelo “Público”, reforçou o apelo, voltando a pedir para se garantir “uma passagem segura para os navios de exportação de alimentos num corredor fora da cidade portuária de Odessa”, tanto “para ajudar a Ucrânia, como “para evitar a fome no mundo”.
Segundo o Observador, especialistas acreditam que seria preciso “um corredor de navegação patrulhado por navios e aviões da NATO”; porém, a forma como a medida seria aplicada tem divido a organização. A possibilidade de se criar uma zona marítima protegida, tal como no caso de uma “no-fly zone” (isto é, o encerramento do espaço aéreo na Ucrânia), tem sido fortemente contestada por ser uma espécie de declaração de guerra.
Apesar de Putin já ter negado as acusações de ser responsável pelos bloqueios, o presidente russo já admitiu “trocar a libertação dos portos ucranianos de Odessa e Mariupol no mar Negro pelo fim das sanções impostas (…) pelos Estados Unidos e [pela] União Europeia”, refere o “Público”.
Logo depois de ter apelado à Rússia, no dia 18, numa reunião sobre a segurança alimentar global, para “permitir a exportação segura e protegida dos grãos armazenados nos portos ucranianos”, António Guterres, secretário-geral da ONU, admitiu que tem estado em “contacto intenso” com a Federação Russa e “outros países importantes”. Guterres demonstrou estar “esperançoso” face aos possíveis resultados, mas não deu mais pormenores para não “minar as chances de sucesso”.
Índia interdita exportações de trigo para salvaguardar a sua “segurança alimentar”
Entretanto, no outro lado do mundo, a Índia, o segundo maior produtor mundial de trigo, decidiu interditar a exportação deste cereal, no passado dia 14. De acordo com o “Diário de Notícias”, estão retidos cerca de quatro mil camiões carregados de cereais, no Porto de Deendayal, no estado de Gujarat, enquanto quatro navios com cerca de 80 mil toneladas de trigo estão impedidos de entrar no local. A Câmara de Comércio de Gandhidham estima que estejam bloqueadas neste porto e noutros entrepostos próximos cerca de 400 mil toneladas de trigo, que vêm dos estados de Pendjab, Harayana, Madhya Pradesh, entre outros.
A medida protecionista tem como principal objetivo “gerir a segurança alimentar inteira do país” e “apoiar as necessidades dos vizinhos e de outros países vulneráveis”, refere uma nota oficial do governo indiano divulgada pelo “The New York Times”.
Nesse documento, estipula-se que as exportações de trigo serão limitadas “às cargas que já tiverem sido compradas e àquelas situações que forem explicitamente autorizadas pelo governo, em resposta aos pedidos de autoridades de outros Estados”, como refere o “Público”. Assim, como acrescenta o “Diário de Notícias”, “os carregamentos efetuados antes do dia 13 de maio” podem ser transportados “para países como o Egito ou a Coreia do Sul, devido a acordos anteriores”.
A decisão do governo da Índia pode estar relacionada com a onda de calor por que o país passa, que ameaça as colheitas de trigo. Assim, como forma de salvaguardar o seu autoabastecimento e a sua segurança alimentar, o país decidiu seguir em frente com a proibição.
Todavia, a medida parece ser mais prejudicial do que benéfica. Segundo o “Expresso”, após ter exportado sete milhões de toneladas de trigo no ano passado, estimava-se que a Índia iria comercializar dez milhões este ano, algo que poderia “amenizar a redução das exportações ucranianas”. Contudo, a decisão de interditar as exportações veio pôr isso em causa, deixando este país de ser a “alternativa”, como refere o “Público”, às exportações provenientes da região do Mar Negro.
Reações à medida protecionista da Índia
Sendo aplicada num “muito mau momento”, como afirma o “Expresso”, a decisão da Índia tem sido fortemente contestada. Um dos maiores detratores corresponde ao G7, composto pela Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido. “Nós somos contra as restrições de exportação e pedimos para manterem os mercados abertos”, afirmou o ministro da Agricultura alemão, Cem Özdemir, citado pelo Observador, após uma reunião, em Estugarda, Alemanha.
“Se todos começarem a impor tais restrições às exportações ou mesmo encerrar os mercados, isso só piorará a crise e também prejudicará a Índia e os seus agricultores”, disse Özdemir.
Já a China – o maior produtor mundial de trigo, segundo a “The Economist” – defende a medida protecionista e contesta o G7, admitindo que “culpar a Índia não resolverá o problema alimentar”, lê-se no Global Times (jornal chinês aliado ao Partido Comunista da China). “Se alguns países do Ocidente decidirem reduzir as exportações de trigo na sequência de uma potencial crise alimentar global, não estarão numa posição de criticar a Índia, um país que enfrenta uma enorme pressão para assegurar o seu próprio abastecimento de comida de maneira a alimentar a sua vasta população”.
O país comunista realça que o G7 deve-se focar na resolução da crise alimentar: “Os países do G7 são bem-vindos para se juntarem aos esforços para combater a crise alimentar global, mas o que é preciso é ação concreta, em vez de críticas face à Índia e outros países em desenvolvimento”.
José Palha, presidente da ANPOC, afirma que a medida “deixou completamente os mercados em sobressalto”, especialmente, após o país “ter anunciado há uns meses que estava preparado para alimentar o mundo”.
Apesar de as condições climáticas serem consideradas um dos principais motivos por detrás da adoção da medida, o também diretor da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), diz ao JPN que, apesar de não saber se “havia por detrás um objetivo especulativo”, este acabou por ser “cumprido”, visto que, logo que “as bolsas abriram”, houve “uma subida vertiginosa dos preços”. Assim, Palha acredita que esta proibição possa servir como “uma jogada” para o país “voltar a pôr o trigo no mercado para [vendê-lo] mais caro”.
Entretanto, Isabel Dinis afirma que, apesar da decisão da Índia ter um “forte impacto ao nível de segurança alimentar no mundo inteiro” e na própria economia global, a adoção da medida é “compreensível”, visto que o país apresenta camadas “muito pobres, que dependem muito de bens essenciais, como o trigo”. Desta forma, a docente acredita que a Índia está apenas a “salvaguardar a sobrevivência da sua população”.
Insegurança alimentar: uma situação cada vez mais preocupante
Enquanto na Ucrânia e na Índia a exportação de trigo foi interrompida, o resto do mundo sofre com as consequências da escassez deste cereal e do consequente aumento exponencial do seu preço. Sendo que o trigo é “uma das fontes de alimentação mais importantes [e] uma das fontes de energia mais importantes”, Isabel Dinis afirma ao JPN que o crescimento do seu preço tem um “impacto brutal” no mercado e economia internacionais.
Desta forma, a alimentação e a sobrevivência da população mundial acabam por ser ameaçadas, levando ao agravamento da insegurança alimentar, ou seja, a falta de disponibilidade e do acesso aos alimentos. Esta problemática tem sido fortemente abordada, nas últimas semanas, especialmente por António Guterres, que, na reunião sobre segurança alimentar global, afirmou que, se não “resolvermos este problema hoje”, “enfrentamos o espetro de escassez de comida global nos próximos meses”.
Em 2021, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda já era preocupante: cerca de 193 milhões, de acordo com os dados do mais recente Relatório Global sobre Crises Alimentares, lançado a 4 de maio pela Rede Global Contra as Crises Alimentares, criada em 2016 pela União Europeia (UE), Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e WFP. O documento constata que, com o conflito e as alterações climáticas, a situação da insegurança alimentar vá “piorar em 2022”. De acordo com um documento do WFP de abril, a insegurança alimentar aguda poderá afetar até 323 milhões de pessoas em 2022, devido ao conflito na Ucrânia.
Sendo o trigo “um bem essencial a muitos níveis”, desde a alimentação à energia, Isabel Dinis considera que as restrições à exportação do trigo e o aumento do seu preço irão ter um impacto “direto”, especialmente na alimentação da população, que “tem uma componente muito forte de cereais”, e um “indireto”, visto que o trigo e “os cereais entram em muitas cadeias de valor”.
Assim, o aumento da cotação do trigo vai “contaminar, com certeza, os preços de muitos outros bens essenciais” e, por exemplo, terá “efeito sobre o mercado da energia”, sendo que os biocombustíveis e semelhantes são “feitos à base de trigo” e de outros cereais. José Palha, presidente da ANPOC, acrescenta que, devido à proibição da exportação de trigo na Ucrânia e na Índia, os países, especialmente da Europa, terão de importar de “sítios muito mais longe, como a Argentina, o Brasil ou até a América do Norte, onde o custo do frete também aumenta brutalmente”, o que fará com que “o trigo seja ainda mais caro”.
Em Portugal, José Palha assegura que “não é expectável que venha a haver algum problema”, visto que o “trigo panificável” que o país consome “é todo importado de França”. Assim, “não terá problemas de abastecimento”.
Contudo, nos países mais pobres, a situação é diferente. Isabel Dinis afirma que o impacto da proibição das exportações e do aumento do preço do trigo será mais “drástico” nos países do Hemisfério Sul, com “economias mais débeis, onde as pessoas são mais pobres e onde a alimentação tem um peso muito grande em termos do seu orçamento”, acabando por estar mais propensos a “situações de fome” e “convulsões sociais”. “No Hemisfério Norte, nos países mais desenvolvidos, a alimentação tem um peso de 8 ou 10% no orçamento e, portanto, se passar para 15 ou 20, não é por aí que a situação se complica muito. Mas, nos países em desenvolvimento, onde [a alimentação] representa 70, 80%, às vezes, do orçamento das famílias, o impacto será fortíssimo”, reitera.
No Hemisfério Norte, nos países mais desenvolvidos, a alimentação tem um peso de 8 ou 10% no orçamento e portanto, se passar para 15 ou 20, não é por aí que a situação se complica muito. Mas, nos países em desenvolvimento, onde [a alimentação] representa 70, 80%, às vezes, do orçamento das famílias, o impacto será fortíssimo.
O presidente da ANPOC concorda e refere que os impactos da situação do trigo se sentiram mais em países africanos, dando o exemplo do Egito, que, por “importar uma quantidade muito grande de cereais” e que por ser “um país muito mais pobre do que os países ocidentais”, não terá dinheiro suficiente “para comprar mantimentos para alimentar a população”. Isto fará “voltar a haver fome, como já há muito tempo não havia nos países mais pobres”.
Há solução para o problema da insegurança alimentar e da fome?
Na reunião sobre a segurança alimentar global, António Guterres afirmou que “acabar com a fome está ao nosso alcance”, sendo que existe “comida suficiente no mundo”. Mas o importante é agir “hoje”. Mas será mesmo possível resolver a questão da fome e da insegurança alimentar? Para José Palha, é “complicado”, sendo que “há aqui [no mundo] uma grande heterogeneidade de cada país, da sua cultura e da sua riqueza”, reiterando que “os países mais pobres serão sempre afetados, com estes fatores exógenos à vontade das pessoas”. “Não me parece fácil acabar com a fome no mundo”, afirma ao JPN.
Entretanto, na ótica de Isabel Dinis, o problema da insegurança alimentar pode ser “mitigado”, mas tem “muitas dúvidas” sobre se pode “ser solucionado”, sendo que para isto se concretizar “seria preciso melhorar fortemente a distribuição do rendimento no mundo” e “limitar fortemente o desperdício alimentar”. Para além disso, a docente da Escola Superior Agrária de Coimbra refere que “seria preciso uma boa vontade imensa dos governos e dos estados e do cidadão em geral” para resolver a situação da insegurança alimentar, algo pelo qual, diz, “não há interesse”. “Haver pobres e gente com fome, também ajuda os objetivos de certas classes políticas e de certos grupos económicos”.
Não me parece fácil acabar com a fome no mundo.
Como maneira de “resolver a crise [alimentar] a curto-prazo e evitar catástrofes a longo-prazo”, o secretário-geral da ONU enumerou, na reunião referida, “cinco passos urgentes”. Primeiramente, Guterres admite ser preciso levantar as restrições às exportações e reduzir a pressão sobre os mercados, aumentando a oferta de comida e fertilizantes. Seguidamente, aponta que “os sistemas de proteção social devem abranger todos os que necessitam”, fornecendo-os com comida, dinheiro e “apoio para água, saneamento, nutrição e meios de subsistência”. Em terceiro lugar, Guterres adverte para a necessidade do financiamento, sendo que “os países em desenvolvimento devem ter acesso a liquidez para que possam fornecer proteção social a todos os cidadãos em necessidade”. Posteriormente, os governos devem reforçar a produção agrícola e os investimentos em sistemas alimentares, que “protegem pequenos produtores de alimentos”. Por fim, o secretário-geral da ONU indica o financiamento de operações humanitárias “para impedir e reduzir a fome”.
Escassez do trigo faz refletir sobre a importância da segurança alimentar e da agricultura
De certa forma, a escassez do trigo e o consequente crescimento do seu preço abriram os olhos às nações para a “questão da soberania alimentar e da segurança alimentar”, afirma Isabel Dinis, demonstrando a relevância do autoabastecimento – isto é, a “necessidade de nós sermos capazes de nos abastecer a nível local [com] produtos essenciais” – nestas situações de crise.
A verdade é que o autoabastecimento de cereais apresenta níveis reduzidos em vários países, algo que “pode ser perigoso em contextos em que há distúrbios sociais e pandemias”, que levam a que “o mercado internacional, no qual nós confiamos cegamente, acabe por não funcionar”, diz a docente.
De acordo com José Palha, Portugal, um país que se tem caracterizado pelo “quase esquecimento” do setor cerealífero durante os últimos 20 anos, tem uma dependência de importação das necessidades de 95%, um número que considera “triste”, fazendo com que Portugal esteja “no pior lugar da UE dos países que produzem”. Assim, para “garantir níveis de abastecimento mínimos” dos cereais, Isabel Dinis aconselha aos países a adoção de “uma política agrícola que não [aposte], como tem feito nos últimos anos, na produção em larga escala para exportação”.
Para além disso, o aumento dos preços do trigo e também o conflito na Ucrânia têm dado “ênfase, realmente, [à] importância da agricultura”, um setor, muitas vezes, percecionado como “menos importante”, afirma a professora universitária. Para José Palha, “a população em geral olha para a agricultura como um dado adquirido” e, como, por exemplo, grande parte dos portugueses nunca “[sentiu] na pele a escassez de produtos” agrícolas, há um “impacto” quando vê “o custo [destes] muitíssimo mais alto do que era há seis meses”.
A população em geral olha para a agricultura como um dado adquirido.
Assim, na ótica do presidente da ANPOC, esta situação fará com que as pessoas comecem a “olhar, de facto, para o setor agrícola como um setor estratégico”, que deve ser, “acarinhado e não unicamente criticado por uma população maioritariamente urbana”. Consequentemente, isto proporcionará uma “aproximação do mundo rural ao urbano”, “duas realidades tão díspares e tão distantes dentro” de Portugal (e em grande parte dos países).
Apesar de concordar com o facto de a agricultura se estar a tornar num setor estratégico, Isabel Dinis admite que pode não ser “na boa direção”. A docente explica que se verifica “a destruição de sistema de produção tradicionais compatíveis com a conservação do ambiente, compatíveis com a produção dos alimentos” para serem utilizados “sistemas altamente especializados”, que são “muito consumidores de recursos, destruidores dos ecossistemas que existem e que visam exatamente a exportação”, sendo “muitas vezes levados a cabo por agentes não-nacionais” como forma de concretizar a “maximização do lucro”, conclui.
Artigo editado por Filipa Silva