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“Centenas de crianças não deveriam ser mantidas em locais de detenção ao lado de adultos”. Mas são
“Nenhum ser humano deveria viver nessas condições”. Crescer no meio de “um grande deserto cheio tendas”
As crianças descendentes de portugueses nos campos de refugiados sírios
A “guerra” travada para conseguir fazer chegar ajuda
Chamam-lhes a “próxima geração de terroristas” que a ninguém pertence
O “pesadelo” que não acaba: o testemunho de quem cresceu num “filme de ação”

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Duas vozes cujo apelo enfraquecido de socorro irá para sempre ecoar nos ouvidos de quem estava do outro lado da linha. Presas estavam, as vozes, e presas ficaram, antes e durante o cerco à prisão de al-Sina, na cidade de al-Hasakah, no nordeste sírio. Quanto ao que aconteceu depois do dia 20 de janeiro, pouco se sabe

“Não consigo parar de pensar na fraqueza e no terror nas vozes desses prisioneiros quando falaram comigo. Eles estavam presos lá dentro, estavam aterrorizados. Eles nunca foram acusados ​​de um crime”, conta Letta Tayler, diretora da divisão de Crise e Conflito da Human Rights Watch (HRW) para o terrorismo e contraterrorismo, ao JPN. 

O cerco a al-Sina durou dez dias. A tentativa do Estado Islâmico (EI) de tentar recuperar alguns dos seus afiliados terá provocado cinco centenas de mortos – entre eles, crianças.

Um australiano de 17 anos (uma dessas vozes) explicou à organização que estava sentado na cela quando “aconteceu uma explosão”. “Houve um tiroteio no nosso bloco. Saí a correr com os meus amigos e no caminho eles foram mortos à minha frente, um rapaz de 14 anos, outro de 15 anos”. 

“Continuei a correr”, disse. A descrição do que via à volta ilustrava um cenário de terror: “muitos corpos, cadáveres, e muitas pessoas a gritar de dor”. As Forças Democráticas Sírias (FDS) acusaram o Estado Islâmico de usar as crianças como escudos humanos, porém, garantiram ter tomado precauções para as proteger. Não foram esclarecidas quais. 

Ilustração: Afonso Melo

Existem relatos de que terão sido encontrados pelo menos dois corpos de crianças nas ruas adjacentes à prisão. O rapaz australiano estimou que 15 a 20 terão sido mortas, incluindo os dois amigos. Outro detido, um canadiano, disse à Human Rights Watch que haviam sido mortos dezenas de meninos. 

Apesar de serem mantidos em “alas separadas” na prisão de al-Sina, os quatro mil prisioneiros daquela infraestrutura, estimados pela Human Rights Watch, vivem “tão empacotados que dormem a tocar uns nos outros”, descreve Letta Tayler. Com o caos que se instalou aquando do ataque do EI, toda a população prisional ficou misturada, incluindo os cerca de 700 menores, os feridos e outros com necessidade de cuidados particulares (com tuberculose e problemas de saúde mental), explicou o detido canadiano.

Este ataque à prisão deve ser um alerta para os países à volta do mundo, que é hora de agir e resolver a crise de detenção inconcebível no nordeste da Síria”, reclama Letta Tayler.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos estima que tenham morrido, durante o cerco, mais de uma centena de integrantes do Estado Islâmico, sete civis e 45 membros das Forças Democráticas Sírias (FSD).

As FDS, que contaram com o apoio da coligação global liderada pelos Estados Unidos da América (CJTF-OIR), recuperaram o controlo da prisão a 30 de janeiro. A Human Rights Watch perdeu o contacto com os detidos quatro dias antes. 

Já a 1 de abril, especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) revelaram que “pelo menos 100 dos meninos continuam desaparecidos”.

As “não-crianças”

Ilustração: Afonso Melo

Considerando a falta de acesso e de números concretos, a Save The Children e a Human Rights Watch estimam que mais de 700 rapazes, a maioria com idades entre os 14 e os 17 anos, estão entre os dez mil detidos espalhados pelas prisões controladas pelas Forças Democráticas Sírias, no nordeste do país. As detenções não têm qualquer base legal que as justifiquem e violam a lei internacional. Alguns jovens terão ligações ao Estado Islâmico (EI). Outros, foram retirados dos campos de refugiados, separados das famílias, e levados para um de 14 estabelecimentos prisionais. Porquê? Por serem do sexo masculino e terem atingido a adolescência, reclamam as ONG. 

“As autoridades do nordeste sírio e a coligação global liderada pelos Estados Unidos da América determinaram, no momento em que essas pessoas foram capturadas, que os homens e os meninos mais velhos deveriam ser segregados das mulheres”, garante Letta Tayler, da Human Rights Watch.

Uma segregação por género que pouco garante, visto que algumas mulheres podem ser “potenciais bombistas suicidas”, existem “homens que nunca magoaram uma mosca”, “há meninos que podem nunca ter sido abordados pelo Estado Islâmico e outros que podem ter sido apenas forçados a cometer atos horríveis”, acrescenta. 

Um estereótipo para o qual Fionnuala Ní Aoláin, Relatora Especial das Nações Unidas, diz estar vigilante. “Certas crianças do sexo masculino”, que existem dentro deste cenário de conflito, são vistas e tratadas como sendo “inerentemente indignas do estatuto de civil, criança ou vítima, e presumidas, em virtude do género (masculino), da afiliação religiosa (muçulmana) e da geografia (Síria), ser ‘não-criança’ para fins de proteção à luz do direito internacional”, relatou em entrevista ao JPN. 

Ainda que em “pequeno número”, há mulheres que estão nas prisões enquanto acompanhantes dos filhos que foram detidos, ao invés de estarem nos campos de refugiados. Uma situação para a qual Fionnuala Ní Aoláin já advertiu em maio de 2021.

Muitos dos rapazes detidos no estabelecimento de al-Sina (que esteve sitiado) foram retirados dos campos ou separados dos familiares durante a queda de Baghouz, a última resistência do EI no país. Os rapazes sírios podem visitar as famílias, mas aos de nacionalidade estrangeira tal não é permitido, disse Badran Chia Kurd, vice-presidente da Administração Autónoma, à Human Rights Watch. Como explicou Kathryn Achilles, diretora de Advocacia, Media e Comunicações da Save The Children na Síria, ao JPN, “eles [os rapazes] estão dolorosamente cientes de que as pessoas que os detêm são as que não os estão a deixar ver os pais”.

Foto: Reuters/Goran Tomasevic

Presos em “condições abomináveis” das quais pouco se sabe

“Estas centenas de crianças não deveriam ser mantidas em locais de detenção ao lado de adultos. Muitos deles estão lá há anos, eles também devem ser tratados como vítimas”, manifestou, ao JPN, a porta-voz regional da Cruz Vermelha para o Próximo e Médio Oriente, com sede em Beirute, Imene Trabelsi. A culpa, para o vice-presidente da Administração Autónoma, Chia Kurd, está na falta de ajuda internacional. 

Os rapazes são colocados em prisões improvisadas e sobrelotadas, “que não cumprem padrões mínimos”, revelou Chia Kurd. Declarações comprovadas pela Human Rights Watch (HRW) que, em 2019 e em 2020, documentou “condições desumanas” em alguns destes estabelecimentos. 

Os dez mil detidos – a maioria sírios e iraquianos e dois mil de outras nacionalidades – vivem amontoados em “celas severamente superlotadas, com latrinas abertas e pouca ventilação”, segundo o relatório da HRW. Duas prisões, a de al-Sina e uma outra na cidade de al-Shaddadah, recebem quase dois terços dos prisioneiros, que chegam a estar 20 a 25 em cada cela, realçou a ONU. “As prisões carecem de serviços essenciais, incluindo cuidados médicos adequados para feridas purulentas e doenças infecciosas, incluindo tuberculose”, denunciou a Human Rights Watch. As mortes já estão na casa das centenas. 

Muitas das crianças mantidas nestas “condições abomináveis” sofrem de “ferimentos de guerra não tratados, membros perdidos e traumas graves”. No limite da tortura, Fionnuala Ní Aoláin fala de um tratamento desumano e degradante sob o direito internacional” que “nenhuma criança deveria ter que suportar”

Com “pouco” acesso à educação e a outros serviços essenciais nas prisões, de acordo com declarações de Chia Kurd, vice-presidente da Administração Autónoma, à HRW, alguns rapazes são transferidos para “centros de reabilitação” – uma nomenclatura sobre a qual a relatora das Nações Unidas já expressou a sua “preocupação”. Está documentada a existência de um centro que, segundo divulgou o vice-presidente, alberga entre 100 e 110 menores.  

Apesar das reservas existentes quanto a estas unidades, a Administração Autónoma gostaria de transferir mais jovens que estão nas prisões para novos centros. O problema é que não existem suficientes e, para Chia Kurd, cabe aos governos estrangeiros construí-los.

As Forças Armadas dos Estados Unidos, que lideram a coligação global contra o Estado Islâmico (CJTF-OIR), têm financiado medidas com o objetivo de reforçar a segurança e resolver a questão da sobrelotação nos centros de detenção. Isto segundo os próprios relatórios do governo dos EUA e o vice-presidente da Administração Autónoma curda. Contudo, as providências pouco efeito têm tido “para colocar as prisões em conformidade com os padrões mínimos de detenção”, assegura a Human Rights Watch nesse relatório. 

“Melhorar as horríveis condições das prisões não muda o facto de que a detenção indefinida sem revisão judicial é ilegal”, defende Letta Tayler, da HRW. No relatório da organização, a diretora da divisão de Crise e Conflito atesta: “expandir prisões e centros de reabilitação fechados para armazenar centenas de crianças que nunca escolheram viver sob o Estado Islâmico é inconcebível.”

Os dez mil detidos nestas prisões – a maioria sírios e iraquianos e dois mil de outras nacionalidades – vivem amontoados em “celas severamente superlotadas, com latrinas abertas e pouca ventilação”, segundo o relatório da HRW. Foto: Reuters/Goran Tomasevic

Pouco se sabe sobre o que realmente se passa nestas prisões. De quando em vez, escapam por entre as brechas das vedações murmúrios desesperados que transportam a escassa informação conhecida.

Ao JPN, Letta Tayler explicou que “quase não há acesso às prisões, por isso é muito difícil obter informações sobre o que está a acontecer lá”. “O que posso dizer é que sem dúvida as condições nas prisões são piores do que nos campos. Muito piores”, assevera.

Dados precisos são poucos. Sabe-se que a prisão de al-Sina é a maior e que existirão, pelo menos, outras treze. O Reino Unido financiou uma prisão na mesma área, al-Hassakah, “que estava quase completa no momento do ataque” e para a qual muitos prisioneiros terão sido transferidos, relatou Letta Tayler ao JPN. “Depois, há uma prisão em Qamishli, chamada Alaya, que é uma prisão menor, mas é outra que tem muitos desses suspeitos do EI e familiares detidos”, para onde terão sido transportados 300 detidos de al-Sina, segundo a informação do Centro de Informação de Rojava, citado pela HRW.

“Também para esta problemática estamos a falar de uma situação em que há necessidade de solução política. Há limites para o que as organizações internacionais podem fazer”. A proteção infantil é “uma emergência que requer ação política para a resolver”, alertou a porta-voz regional da Cruz Vermelha para o Próximo e Médio Oriente, Imene Trabelsi, ao JPN.

Vítimas de conflito

Estas crianças devem ser tratadas como vítimas de conflito: é a tese defendida por várias organizações humanitárias e supostamente assegurada por um conjunto de leis e princípios internacionais, entre os quais a Convenção sobre os Direitos da Criança – que não estão, porém, a ser cumpridos

Falando dos nacionais de países terceiros (“third country nationals”), os menores foram levados para a Síria pelos pais ou outros familiares, suspeitos, alguns, de afiliação com o Estado Islâmico. “Presos” à condição de criança, não deram consentimento quer para nascerem, quer para serem levados para território sírio e ficarem para sempre ligados ao jihadismo islâmico. Não puderam escolher o seu futuro e caíram num “buraco negro”, assim descreve Letta Tayler, do qual poucos saem.

Para além daqueles que foram levados para o meio do conflito, há quem tenha nascido no seio deste, fruto, por vezes, de violação, coerção sexual ou casamento forçado, assinalou a ONU. Nenhuma criança, em qualquer parte do mundo, é responsável pelas circunstâncias do seu nascimento, e “não pode ser punida, excluída, considerada indigna da proteção dos direitos humanos em virtude do status ou atos dos pais”, reforçou Fionnuala Ní Aoláin. 

Vítimas até prova em contrário

Há vários fatores que indicam que as crianças que as Forças Democráticas Sírias detêm devem ser consideradas vítimas. Antes da captura e da detenção arbitrária pelas forças curdas, algumas foram exploradas pelo Estado Islâmico (EI) e outros grupos, tendo, por isso, sido expostas a violência bárbara. Muitas têm mazelas físicas provocadas por bombas e balas, sem terem direito a cuidados médicos e psicológicos adequados. 

Nos locais de detenção, os rapazes contraem doenças, estão desnutridos. Muitos são órfãos e viram os familiares a ser mortos à sua frente, outros perderam o contacto com a família, fruto da detenção ilegal e de não lhes ser permitido falar com os familiares no exterior, reportam as várias organizações.

São vítimas do terrorismo e não deixam de o ser quando atingem a maior idade. Uma detenção que é de si ilegal não deixa de o ser quando a criança cumpre 18 anos. Não existe uma base legal “para deter um adulto com base no seu estatuto de adulto recém-adquirido, quando a detenção anterior violou o direito internacional”. O status desses indivíduos deve permanecer “o de suposta vítima até que sejam apresentadas provas de atos específicos que constituam crimes graves de direito interno ou internacional”, salienta Fionnuala Ní Aoláin.

No que concerne às crianças em transição para a idade adulta, a responsabilidade criminal só deve ser aplicada em circunstâncias raras: “quando a criança é objetivamente identificada como tendo a intenção mental necessária para cometer um ato criminoso, bem como provas suficientes para provar o ato criminoso alegado”, atesta a investigadora da ONU.

Duas prisões, a de al-Sina e uma outra na cidade de al-Shaddadah, recebem quase dois terços dos prisioneiros, que chegam a estar 20 a 25 em cada cela, realçou a ONU. Foto: Reuters/Goran Tomasevic

“Cada dia na vida de uma criança é precioso”, escreve a Relatora Especial das Nações Unidas. Segundo o relatório da ONU, para além de inconsistente com o melhor interesse das crianças e uma violação dos direitos da família, separar menores do sexo masculino das mães nos campos do nordeste da Síria é uma “violação do direito internacional”.

A detenção indefinida, baseada no género, de crianças do sexo masculino sem um processo legal é uma violação do direito internacional. A prática de manter meninos em centros de detenção junto de homens adultos, suspeitos de associação ao Estado IsIâmico e a outros grupos armados, é uma violação do direito internacional.

“Os Estados têm a obrigação de proteger os seus cidadãos mais vulneráveis. O tempo para a ação já passou há muito tempo no nordeste da Síria”, termina Ní Aoláin. 

Artigo editado por Tiago Serra Cunha e Filipa Silva