ÍNDICE
Início
“Centenas de crianças não deveriam ser mantidas em locais de detenção ao lado de adultos”. Mas são
“Nenhum ser humano deveria viver nessas condições”. Crescer no meio de “um grande deserto cheio tendas”
As crianças descendentes de portugueses nos campos de refugiados sírios
A “guerra” travada para conseguir fazer chegar ajuda
Chamam-lhes a “próxima geração de terroristas” que a ninguém pertence
O “pesadelo” que não acaba: o testemunho de quem cresceu num “filme de ação”

“Tudo começou quando eu estava no sexto ano. Os protestos decorriam em diferentes partes da Síria, mas não estavam perto. Mais tarde, foram-se aproximando e começaram a crescer. No início não era grave, mas fomos cautelosos. Fomos muito cautelosos. Três meses mais tarde, tornaram-se mais graves quando os tiros começaram a acontecer, os bombardeamentos, diferentes tipos de armamento começaram a ser usados”. A partir da Síria, o testemunho dado ao JPN é de Rawd Dandashi, uma jovem de 23 anos que cresceu no meio da guerra travada há mais de uma década no seu país.

Em 2011, a violência e a repressão foram usadas para controlar a crescente onda de contestação de um povo que, em 40 anos, conheceu apenas dois líderes: Hafez e Bashar al-Assad. Muitos anos antes, em 1982, um episódio na cidade de Hama viria a dar o tom da brutalidade do regime. Para pôr um fim à revolta da Irmandade Muçulmana, Hafez al-Assad deu ordens aos militares para agirem sobre os manifestantes. Mais de 25 mil pessoas acabariam por ser assassinadas pelas forças sírias

Mas foi em 2011 que eclodiu a guerra da Síria. Desde então, 11 anos de “tristeza”, “falta de liberdade”, perda de esperança. O povo sírio está preso num conflito sem fim à vista. Os anos passam, o número de mortos e feridos aumenta, mas a situação mantém-se. Muitos procuraram segurança nos campos de deslocados e refugiados ou em países vizinhos, mas, principalmente na Síria, é difícil encontrar um verdadeiro porto de abrigo. 

“Caos absoluto”. É assim que as organizações humanitárias e de direitos humanos classificam o conflito. João Godinho Martins, da Médicos Sem Fronteiras, diz ao JPN que estamos perante “uma guerra de poder e de influências”, onde existem vários atores a concorrer pelo holofote.

A Save The Children estima que em todo o país existam 6,5 milhões de crianças a necessitar de ajuda humanitária, 2,5 milhões sem acesso a educação e quase 800 mil estão desnutridas

“Na verdade, para mim era inacreditável, era algo em que eu não podia acreditar naquele momento. Foi como um pesadelo. Para uma aluna do sexto ano, que tem cerca de 12 anos, era como se isto fosse terminar em algumas semanas. Como se tudo fosse apenas uma pequena parte da vida que todos vão ter de passar. Não era real. Nunca pareceu real”, expressa Rawd Dandashi. 

De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, o conflito já matou cerca de 500 mil pessoas

 

“O medo nunca nos abandonou”

“Voltar da escola para casa era muito difícil”. Quatro ou cinco meses depois do início do conflito, Rawd Dandashi recorda que, uma vez, ao regressar da escola, no posto de controlo, disseram-lhe que, caso quisesse entrar ou atravessar a rua para sua casa, “eles não podiam responsabilizar-se” pela sua vida. “Era assim tão grave”, ilustra.

“Na realidade, a escola teve muitas férias, se é que se pode chamar-lhes assim. Não são férias, mas tivemos sempre avisos enviados aos telefones dos nossos pais a dizer: ‘por favor, não enviem os vossos filhos amanhã’”.

Entre o final de 2011 e início de 2012 “muitos lugares foram sitiados”, ficando estas províncias sem rede, comida ou eletricidade. Muitas vezes, “é como se o corte de energia não fosse de facto do governo, mas sim de todo o tiroteio que estava a acontecer”, afirma Rawd. “Ficámos sem eletricidade durante três dias e cerca de 14 horas. Lembro-me que a casa dos meus avós ficou sem eletricidade durante 48 dias seguidos”. Tiveram de se “habituar”, percebendo que o conflito estava “a piorar, e não iria melhorar”.

Com os efeitos da guerra, a jovem de Homs descreve uma sociedade que “mudou drasticamente” e na qual “falar era arriscado”. “Na realidade, as pessoas ficaram muito religiosas e muito: ‘não podemos sequer falar com alguém de outra corrente da mesma religião’. É perigoso”, conta. 

“O medo nunca nos abandonou. O medo nunca nos deixou, a nenhum de nós. Nem o luto. Não sabíamos quando chegaria realmente a nossa hora de morrer. Porque as escolas estavam de facto a ser bombardeadas. De repente, sais e alguém dispara contra ti. Os preços estavam a subir muito. As pessoas costumavam roubar os pães a outras pessoas. A economia estava tão fraca que as pessoas tinham medo de outras. Não se pode sequer confiar em ninguém, não se pode estar seguro perto de ninguém, não se pode conhecer ninguém novo”. 

“Às vezes, conseguia-se que os tópicos de conversa fossem além do cenário absorvente e aterrador”, diz Rawd. Ainda assim, torna-se impossível fugir da realidade mais do que poucas vezes: “Costumávamos falar de pontos de controlo: ter pontos de controlo; se serão para sempre; se não o serão; este ponto de controlo vai acabar; é mais difícil passar por este ponto do que por outro. Esta era a nossa vida. Era só sobre isso que podíamos falar”. 

“As nossas vidas são vazias”

“Todos pensam na possibilidade de deixar a Síria. Hoje, ninguém pensa em ficar aqui, a não ser que realmente beneficiem do que está a acontecer”, garante. 

Os que ficam, diz Rawd, tentam manter a sanidade mental. “Mas como é que alguém vive realmente, sabendo que não teve uma vida normal. Na realidade, viveram um pesadelo. Na verdade, viram pessoas a serem alvejadas. Nós vivemos num filme de ação. Quando tinha 14 anos, não era suposto ver cadáveres à minha frente. Era suposto sair e divertir-me e aprender mais sobre ser uma adolescente. Era suposto eu ser uma adolescente, não aprender sobre como estar segura e onde me esconder quando houvesse bombardeamentos lá fora”, exprime.

Agora, a situação “está estável”. “Não é seguro, mas é estável”. Existem cafés abertos, apenas dois ou três postos de controlo na entrada das cidades, “pode-se sair, pode-se viajar”. “É mais seguro, mas nunca é 100% seguro. Isso só acontecerá quando tudo estiver realmente estável, até a economia funcionar, até não termos de nos preocupar com o que vamos comer hoje, ou como vamos poupar dinheiro para podermos comer até ao fim do mês”, relata.

“As pessoas querem viver a partir de agora. Do meu ponto de vista, as pessoas já não querem realmente saber das suas vidas, apenas querem viver. Ou apenas querem sair daqui. Ou um ou outro”. Por “viver”, Rawd entende “de facto ganhar dinheiro”, tentar comprar algo “’luxuoso’, como uma camisola extra de mês a mês”, ou “simplesmente estar sentado em casa”.

Não temos nada, as nossas vidas são vazias. Tenho de ser honesta, as nossas vidas são vazias. Tudo o que fazemos é ir à escola, ir à universidade, estudar e depois voltar para casa. Não temos vontade de estudar, porque já estamos fartos de tudo. Há festas a acontecer, mas na verdade quando as pessoas lá vão, é porque estão fartas de tudo. Vemos pessoas a perder a cabeça na festa, porque querem desfrutar de cada momento, porque sabem que vão voltar à sua vida aborrecida, à sua vida chata, e vão voltar a pensar em como vão ganhar a vida ou como vão viver, ou como vão acordar, ou quem vai morrer”, afirma.

“Não era suposto eu viver esta vida”

Quando questionada se após 11 extenuantes anos ainda há esperança de uma vida que se assemelhe à que existia antes de 2011, Rawd Dandashi assegura: “Não vemos esperança num futuro próximo, mas há esperança para daqui a 50 anos”.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha e Filipa Silva