Construções em escombros, milhões de pessoas deslocadas e um país reduzido a cinzas. É este o somatório de dez anos de um intenso conflito. As feridas estão ainda por sarar e a paz é uma miragem. O JPN esteve à conversa com Sandra Fernandes, professora de Relações Internacionais da Universidade do Minho e com Ali Kadour, habitante de Alepo, para perceber os contornos da guerra.
15 de março de 2011. A data que marcou a história da Síria. Milhares de pessoas saíram às ruas de várias cidades do país, incluindo a capital, Damasco, para protestar contra as desigualdades sociais, as elevadas taxas de desemprego e a corrupção, exigindo democracia.
Num país onde as manifestações estavam proibidas há meio século, os ecos do movimento conhecido como a “Primavera Árabe”, que abalou ditaduras no poder há décadas, irrompeu pela Síria e despoletou uma violenta revolta armada. Impulsionados pelos ventos emancipatórios que chegavam provenientes da Tunísia, do Egito e da Líbia, a população síria entoava “O povo quer a queda do regime”, depois de décadas sob a autoridade política de Bashar Al-Assad.
Uma década de vidas destruídas
A onda de insatisfação que se fazia sentir acabou com o silêncio que perdurava há anos. Para a esmagadora maioria dos sírios, a crítica ao regime não era uma opção. O receio das consequências que isso poderia trazer provocou descontentamento na população, chamando às ruas milhares de sírios.
Ali Kadour, professor de Inglês da Universidade de Alepo, confessa, em entrevista ao JPN, que as pessoas “nasciam para serem normais. Pensar em inovar, criar ou estar no Parlamento eram tudo utopias. Não era aceitável. Estávamos num silêncio ensurdecedor e não aguentamos mais”.
The conflict in #Syria started more than 10 years ago.
Over 6.5 million people live as refugees in Syria’s neighbourhood and #Europe.Many children among these human lives just want to return home and live peacefully. @eu_echo @eu_near @EUinSyria
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— EC AV Service (@EC_AVService) March 30, 2021
A fugaz luta pela liberdade deu ânimo aos sírios. Contudo, a forma como o regime de Bashar al-Assad respondeu a essa ambição chocou o mundo ocidental. O governo sírio decidiu agir, usando a força contra os dissidentes, e os protestos por todo o país subiram de tom, exigindo a demissão do Presidente.
A instabilidade espalhou-se e a repressão intensificou-se. Os apoiantes da oposição recorreram às armas, primeiro para se defenderem e, posteriormente, para expulsar as forças do Governo das suas áreas. Segundo a BBC, Bashar al-Assad jurou eliminar aqueles a que chamou de “terroristas armados que visam desestabilizar o país“, ajudados por “inimigos estrangeiros”.
Nove anos depois, a guerra que se lhe seguiu e que ainda prossegue, fez mais de 380 mil mortos, quase 200 mil desaparecidos, 5,7 milhões de refugiados, seis milhões de deslocados internos e uma disrupção política, social e humanitária sem precedentes.
A resposta do regime
Perante a insolência dos miúdos de Deraa, no sul do território, o líder sírio respondeu com detenções, tortura e difusão de pânico. A resposta das autoridades contra os jovens protestantes acabou por ser o catalisador de uma ampla onda de contestação, reprimida por Assad e pelo seu exército, com milhares de assassínios e detenções, em várias cidades sírias.
Segundo conta Ali Kadour, também ele voz ativa nos protestos, a única exigência popular era “liberdade e alguns direitos básicos que nos eram privados. Mas, desde o início, Bashar Al-Assad começou a enviar milícias armadas, que não eram, de forma nenhuma, estruturas policiais. O seu único objetivo era matar e espalhar terror”. Perante este ambiente de crispação generalizado, e atendendo à dimensão da tomada de ação do governo, os protestos começaram a ter maior adesão.
Sobre este tópico, relativo à atuação do governo na altura de eclosão da revolta, Ali Kadour relata o momento em que foi, inclusivamente, preso e violentamente agredido por um elemento ligado às forças do regime. De forma explícita e sem pudores, o professor sírio retrata a crueldade a que foi sujeito.
O impacto de potências externas
A duração e a extrema complexidade do conflito, que conheceu, ao longo das suas várias etapas, uma multiplicidade de atores envolvidos, foi alvo de constantes mudanças no seu mapa geopolítico e de redefinições das prioridades estratégicas e militares.
A par da criação, em julho de 2011, do Exército Livre da Síria (ELS), composto por cidadãos e militares que desertaram do exército Sírio (estima-se que cerca de 40 mil soldados tenham desertado do exército nacional para formar uma das principais fações de oposição ao governo de Bashar Al-Assad), a vertente religiosa assumiu, igualmente, um enorme protagonismo.
Assim, o conflito que eclodiu em Deera foi conhecendo várias etapas e tornou-se num problema global. Rapidamente, espalhou-se para Idlib, Alepo, Homs, Deir Ezzor ou Hama, chamando a si a atenção mediática internacional, e assistindo à intervenção, indireta numa primeira fase, de potências estrangeiras.
Enquanto que de um lado a Rússia e o Irão armaram e financiaram Assad, os Estados Unidos da América e a Turquia mantiveram-se do lado dos revoltosos. De realçar também o envolvimento da Arábia Saudita, Catar, Israel, Reino Unido e França no teatro de operações sírio, alavancando a dimensão das atrocidades cometidas.
Na visão de Sandra Fernandes, professora assistente da Universidade do Minho no Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública, “a Rússia foi fundamental militarmente, entrando como apoio militar no terreno em 2015 e é a partir daí que Bashar Al-Assad começa a reconquista territorial do seu país”, das quais se destacam muitas zonas consideradas chave, como a cidade de Alepo e, mais recentemente, o enclave de Ghouta Oriental.
No que concerne ao posicionamento adotado pelos EUA, a docente considera que se trata de uma “intervenção indireta”. Esta ausência americana acabou por “dar muito espaço a nações como a Rússia, essencialmente, e o Irão”, que cimentaram o seu poder e influência na região.
O fundamentalismo religioso num país em farrapos
Com o escalar de violência na Síria, o governo do país começou a perder poder efetivo sobre várias regiões e localidades no país. Este cenário acabou por atrair grupos fundamentalistas religiosos para o conflito. Neste sentido, jihadistas e antigos combatentes de organizações próximas à Al-Qaeda infiltraram-se nos territórios rebeldes.
Após estas fações emergirem e consolidarem o seu poder no país, a guerra ganhou novos contornos, opondo a maioria muçulmana sunita, apoiada pelos estados do Golfo, às forças xiitas leais ao presidente sírio, apoiadas pelo Irão e pela Rússia – os aliados mais importantes de Assad.
Esta carência de poder num enorme deserto com a Síria, em guerra, e o vizinho Iraque, em pós-guerra, foi terreno fértil para que o grupo terrorista Daesh ganhasse expansão, quer territorial, quer de difusão dos seus valores. Através de uma interpretação e leitura mais fundamentalista da sharia (lei islâmica) e impulsionados pelos milhões gerados da exploração petrolífera, foram ganhando cada vez mais protagonismo e domando algumas das mais importantes e históricas vilas e cidades sírias.
Through a relentless bombing campaign on Idlib this Syrian father has been teaching his daughter to laugh when she hears explosions. pic.twitter.com/wRojclnuKO
— Amnesty International (@amnesty) February 21, 2020
Apesar das várias tentativas para obter um cessar-fogo, o conflito depressa evoluiu para uma guerra total e o número de mortos e feridos aumentou drasticamente por todo o país. O conflito sírio despoletou uma das maiores violações dos direitos humanos no mundo com graves repercussões regionais e internacionais.
Com uma Síria cada vez mais desmembrada, quem mais beneficiou desta desarrumação territorial foi o regime de Bashar Al-Assad, que se foi reerguendo. Fortemente respaldado pela força aérea russa e denunciado por organizações internacionais pelo uso de armas químicas e bombardeamentos de hospitais, escolas e habitações civis, o governo avançou pela região Oriental do país e foi tomando cidades à oposição, em nome da “luta contra o terrorismo”.
The OPCW has confirmed the use of Sarin and Chlorine in #Ltamenah, Syria.
Immediate, meaningful action is needed to stop chemical weapons attacks from becoming the norm. #NotoChemicalWeapons pic.twitter.com/UlwUcBIlpu
— Foreign, Commonwealth & Development Office (@FCDOGovUK) June 13, 2018
Os ataques químicos
O conflito sírio atingiu o seu ponto de ebulição com o flagelo provocado pelos diversos ataques químicos de que o país foi sendo alvo e que fez aumentar de forma exponencial a crueldade dosa atos cometidas. Esta é a conclusão de uma investigação da BBC, que conseguiu verificar a ocorrência de 106 ataques químicos no país do Médio Oriente desde setembro de 2013, a maioria levada a cabo pelas forças do exército sírio.
Através de uma parceria entre o programa Panorama e a BBC Arábica, a cadeia de televisão britânica debruçou-se sobre 164 relatos de alegados ataques com armas químicas, tendo chegado à conclusão de que 106 deles são relatos credíveis, com base nas provas disponíveis como vídeos, fotografias e testemunhos.
A criteriosa análise da BBC refere que a maioria dos ataques químicos terão sido perpetrados contra a província de Idlib, último bastião dos rebeldes que lutam contra Assad. Porém, cidades como Alepo e Ghouta foram igualmente alvo deste tipo de investida. O ataque que terá provocado o maior número de mortes foi em Khan Sheikhoun (Idlib), em abril de 2017. Ao todo, mais de 80 pessoas terão morrido num só dia.
Ali Kadour foi um dos milhões de sírios que sofreu na pele as consequências dos ataques dirigidos contra a população e retrata o impacto que esta onda de violência trouxe.
O dilema de milhões de refugiados
A crise no país foi além fronteiras e arrastou consigo toda a região. No total, mais de seis milhões de sírios fugiram do país durante os anos de guerra civil, e cerca de outros seis milhões tornaram-se deslocados internos, provocando uma crise de refugiados nas regiões vizinhas e países ocidentais. O cenário sírio é o maior movimento do género causado por um conflito, desde a Segunda Guerra Mundial.
A Turquia é o país vizinho que acolhe o maior número de refugiados sírios, seguindo-se o Líbano, a Jordânia, o Iraque e o Egito, avança a OCHA. As restantes populações refugiadas estão espalhadas por outras regiões africanas e 1,05 milhões estão na Europa.
O desespero guia esta interminável multidão que deixa tudo para trás e arrisca a própria vida em busca da paz que não consegue viver no seu país de origem. Tornaram-se usuais as notícias sobre os desastres com milhares de mortos, durante a perigosa travessia do Mar Mediterrâneo.
Estes movimentos populacionais tiveram também um impacto significativo sobre a demografia no interior do país. Algumas áreas foram despovoadas, perdendo até 50% de sua população. Outras, por outro lado, sofreram um grande fluxo de pessoas, provocando a sobrelotação dos abrigos. A construção de novos abrigos é complicada pelo alto custo dos materiais e serviços, assim como pela insegurança contínua.
“Gerações perdidas”
A destruição generalizada das infraestruturas civis e as limitadas oportunidades económicas colocam muitos sírios numa situação de vulnerabilidade, especialmente as crianças. Contudo, à medida que a crise avança, os esforços comprovam-se insuficientes para atender às necessidades humanitárias do país.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) deu conta de que 2,5 milhões de crianças estão privadas de acesso escolar perante a destruição das escolas. Outras são forçadas a trabalhar ou a casar. De realçar que muitas nasceram já em contexto de guerra e a única realidade que conhecem é a do conflito, da perda e das deslocações constantes. 2018 foi o ano mais mortal para as crianças sírias, com mais de mil mortes em combate – o maior número anual de vítimas desde o início da guerra em 2011.
Dados das Nações Unidas revelam igualmente que, desde 2011 até abril de 2014, foram mortas cerca de 8.803 crianças, ao passo que dados do Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR) estimam 22 mil crianças mortas durante o conflito.
O custo económico de dez anos de guerra foi avaliado em 1.008 mil milhões de euros num relatório recente da organização não-governamental World Vision e, segundo a ONU, 60% da população vive numa situação de insegurança alimentar.
Assim, com uma economia colapsada, um país completamente destruído e com uma crise humanitária em mãos, a paz síria é ainda uma miragem. Perante este panorama, Bashar Al-Assad continua no poder, mas à frente de um país em ruínas, com soberania limitada sobre um território desmembrado por potências estrangeiras, sem perspetiva imediata de reconstrução ou reconciliação.
Das promessas de democratização a um legado destrutivo. É esta a história recente da Síria, ainda com a indefinição a pairar no ar.
Artigo editado por João Malheiro