O Porto/Post/Doc voltou a ser uma “montra anual daquilo que melhor se faz nas escolas de cinema”. O JPN falou com dois dos protagonista do programa "Cinema Novo" deste ano. A falta de apoios continua a ser uma realidade para quem produz em contexto de escola, mas há também otimismo sobre o futuro.

O filme “Nada Para Ver Aqui”, de Nicholas Bouchez, foi o vencedor da categoria “Cinema Novo” deste ano. Foto: D.R.

Francisca Dores e Carlos Tavares Pedro realizaram dois dos 11 documentários que este ano estiveram em competição na secção “Cinema Novo”, aquela que o Porto/Post/Doc dedica, todos os anos, a curtas-metragens realizadas por estudantes portugueses ou estudantes de instituições de ensino portuguesas. Une-os a juventude, a vontade de criar e o uso da arte como forma de intervenção social.

Francisca – que o JPN encontrou, tal como Carlos, nos corredores do Cinema Trindade, onde os filmes foram exibidos nos dias 21, 22 e 23 – tem 24 anos, nasceu no Porto e estuda na Escola das Artes, da Universidade Católica do Porto. É a autora da curta-metragem How to Be a Candid Woman, uma “crítica musical sobre o modo como foram e são representadas e educadas as mulheres através do audiovisual”.

Para a realizadora, esta presença nas telas do Porto/Post/Doc não é uma estreia. Em 2017, ainda na Escola Artística Soares dos Reis, apresentou “Abel” ao mundo. Foi premiada nacional e internacionalmente com este que foi um dos filmes do programa “School Trip Soares dos Reis” da edição de 2017 do Porto/Post/Doc.

Carlos Tavares Pedro é mais novo, tem 22 anos e é lisboeta. É estudante da ESAD, nas Caldas da Rainha, e foi lá que fundou o Cine Clube das Caldas da Rainha, em co-produção com o Coletivo A BUNCH OF KIDS. Trouxe até ao Trindade “Tempos Conturbados”, um documentário que “é uma investigação histórica familiar” sobre os primeiros tempos após a independência angolana através de arquivos pessoais.

A “reimaginação” das imagens e a inspiração francesa

Não falamos com todos os autores, mas percebemos uma tendência em quase todos os trabalhos exibidos: um uso recorrente de imagens de arquivo. A curta-metragem de Francisca Dores é um exemplo disso e a realizadora justificou a escolha. “Já temos tanta produção de imagens… Não faz mais sentido pegar no que já existe e tentar encontrar novos significados e reimaginar as imagens? Acho que foi mais por aí.”

Como referências para a forma como pensou o trabalho sobre as imagens nesta curta, aponta os nomes de dois filósofos franceses: Georges Didi-Huberman e Marie-José Mondzain.

O inglês até pode ser a língua mais ouvida nas salas de cinema, mas para estes jovens é ainda o francês a língua das grandes referências.

Carlos Pedro diz que não costuma inspirar-se em “cinema mainstream” e lembrou, também ele, o nome e obra de autores franceses. Contou ter um estudo intensivo dos livros do filósofo Gilles Deleuze, diz ter visto todos os filmes de Jean-Luc Godard e, por isso, tem muito presente o cinema francês do movimento “Nouvelle Vague” na sua obra. Aliás, foi por se inspirar na “Nouvelle Vague” que “Tempos Conturbados” foi filmado na resolução 4:3. “Suponho que grande parte do meu núcleo de colegas se inspire muito no cinema francês”, concluiu.

A intervenção como “sociologia do futuro” e reflexão pessoal

Em “How to Be a Candid Woman”, Francisca Dores marca uma posição contra o retrato das mulheres no audiovisual; em “Tempos Conturbados”, Carlos Pedro critica duramente o papel do MPLA nos tempos pós-revolução. Em ambos, a arte não se alheia da função interventiva. É uma tendência que não é nova, mas que, nestes casos, tem duas origens particulares.

Francisca conta que sempre que pensa em fazer algum filme, a sua cabeça diz-lhe “logo que o protagonista vai ser masculino” e não sabe “porque é que isso acontece”, mas o mote desta curta talvez seja a resposta. A representação das mulheres no audiovisual pode ser responsável por um esquecimento inconsciente da presença feminina na hora de criar, então esta obra foi um dois em um: deu voz às mulheres enquanto representava o impacto da forma como estas foram sendo representadas ao longo da história do cinema.

“Finalmente, com este trabalho, consegui pensar sobre duas coisas que não têm nada a ver, mas que têm tudo a ver. Neste caso, como falar corretamente e como ser mulher. Acho que foi mesmo a oportunidade que arranjei, naquilo que eu tenho andado a explorar e fazer de refletir sobre este assunto. Tentar pensar isso de uma forma mais material, pelo meio do cinema.”

Carlos quis, através da “arte em movimento”, mostrar aquilo que a família tinha para dizer ao mundo. Reconhece, inequivocamente, o papel interventivo da arte e não o cinge somente à comunicação das lutas, mas também como uma forma de “sociologia sobre o que pode ser o futuro”.

“Bom tempo”, mas faltam apoios

Os jovens realizadores querem intervir, mas acima de tudo querem criar e, para isso, é preciso ter condições. E neste ponto as opiniões dos dois realizadores entrevistados dividem-se. O criador de “Tempos Conturbados” tem a certeza de que faltam apoios. Lamenta que na faculdade onde estuda os estudantes sejam obrigados a pagar toda a produção dos trabalhos.

Para contornar esta falta de recursos, a solução de Carlos é a mesma de quase todos os jovens artistas. Uniu-se aos colegas e criou um coletivo que é também uma produtora independente. Daí nasceu A BUNCH OF KIDS, um coletivo que quer “proporcionar projetos em colaboração com vários alunos para poderem cortar os custos de grande produção de cinema”. Ainda assim, fez questão de lembrar a importância do Porto/Post/Doc e festivais e plataformas semelhantes para o crescimento dos artistas.

Francisca Dores não discorda, mas considera que “cada vez mais há mais iniciativas” e que “felizmente estamos num bom tempo”. Lembrou, como Carlos, a importância de iniciativas como o Porto/Post/Doc e realçou a reabertura do Cinema Batalha que “está a abraçar muita gente”.

Talvez seja arrojado confirmar que sejam bons tempos para os jovens realizadores portugueses, mas serão com certeza tempos de qualidade. O Porto/Post/Doc tem contado com salas bem preenchidas em todas as sessões e o público atravessa várias gerações. Acima de tudo, o festival tem servido para ouvir os artistas e os artistas não se inibem de falar. Querem falar das suas referências, partilhar os processos e ouvir quem os vê.

“Nada para ver aqui” foi o vencedor da categoria

Os vencedores do concurso “Cinema Novo” foram anunciados no dia 25 e o galardoado foi “Nada Para Ver Aqui”, um trabalho do realizador Nicholas Bouchez que, nas palavras do júri, “revela um rigor de olhar e uma precisão de ritmo e espacialidade singulares, em diálogo direto com autores fundamentais da história do cinema”. Home, Revised, de Inês Pedrosa e Melo foi consagrada com uma menção honrosa.

O Porto/Post/Doc terminou este sábado, dia 26, e regressa para o ano de 17 a 25 de novembro, já no novo Cinema Batalha.

Artigo editado por Filipa Silva