A manhã começava em Los Angeles, enquanto a noite caía no Porto. João Gonzalez, realizador, e Bruno Caetano, produtor, aguardam em Hollywood pela cerimónia onde o seu filme, "Ice Merchants", pode vencer o Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação. Em conversa com o JPN, contam que o mais gratificante é saber que transmitiram a sua mensagem. Confessam, ainda, que “já há ideias” para um próximo projeto.
É já na madrugada da próxima segunda-feira (13) que o realizador João Gonzalez vai representar Portugal na cerimónia dos Óscares 2023. Acompanha-o Bruno Caetano, produtor e membro do COLA – Colectivo Audiovisual, também responsável pela curta “Ice Merchants”, já vencedora de múltiplos prémios internacionais. Em entrevista ao JPN, falam sobre as premiações, o estado da animação em Portugal e projetos futuros.
Gonzalez é animador, ilustrador, realizador e músico. Natural do Porto, licenciou-se em Mutimédia na Escola Superior de Media, Artes e Design do Politécnico do Porto (ESMAD) tendo, posteriormente, continuado a formação no Reino Unido, com um mestrado no Royal College of Art. Aos 27 anos, já realizou três fitas – além da mais recente obra, que chamou a atenção do mundo, durante a sua formação fez as curtas-metragens multi-premiadas “The Voyager” (2017) e “Nestor” (2019).
Bruno Caetano, desempenha funções como produtor, realizador e animador no COLA, onde é um membro fundador. Formou-se no Centro de Investigação e Estudos e Multimédia na Faculdade das Belas-Artes de Lisboa tendo, ao longo da carreira, participado em múltiplos projetos – e aplicando as mais variadas técnicas de animação e imagem real.
Com o JPN, o jovem artista partilha que só “a nomeação [para os Óscares] já é uma vitória enorme para a equipa”, salientando o “efeito mediático” associado ao prémio que chama “bastante a atenção, mesmo a pessoas que não estão na indústria”. Desta forma, acredita que o destaque que “Ice Merchants” tem recebido pode trazer relevo “para o nível enorme da animação portuguesa” e para o “que já se tem feito nas últimas décadas”.
Criar novos mundos, tendo como limite apenas a imaginação
A animação é, para Gonzalez, a forma de expressão que permite mais “liberdade em criar realidades” novas, “que não têm de seguir exatamente as mesmas regras da nossa realidade”. “Quando uma pessoa vê animação quebra um bocado essa barreira”, completa.
A animação não é um género, é um medium. – João Gonzalez
Mas não é apenas isso que cativa o artista, que se define como um “control freak”. “O controlo absoluto na estética do filme desde raiz – por exemplo o comprimento das pernas das personagens, que a animação permite ter -, atrai-me muito no medium. Em animação tens controlo em literalmente tudo”, declara.
Na verdade, o animador opta por não se prender aos detalhes técnicos do desenho, focando-se na mensagem que quer transmitir. Mas ainda “há pessoas que questionam e veem aquilo de uma forma bastante literal“. “Cada espectador digere o filme de uma forma diferente, mas acima de tudo o importante é [saber] que aquilo é uma metáfora”, sublinha.
De braço dado com essa liberdade criativa, repleta de simbolismos, João Gonzalez construiu uma estética baseada em quatro cores. Existe, assim, “uma paleta cromática muito limitada, e é algo que não existiria na vida real, a menos que houvesse um tratamento de imagem muito forte. Mas são essas coisas pequenas que me permitem comunicar de forma subtil, diferente da imagem real”, diz.
Em animação tens controlo em literalmente tudo. – João Gonzalez
Ainda acerca do tema, acrescenta que “há uma razão para aquelas cores estarem lá”. “Foi importante não só agradar-me visualmente, mas também ter um fator conceptual no filme”, explica.
Sobre as nuances da fita, também a vertente sonora é bastante valorizada pelo realizador, que começou “a tocar piano muito cedo”. “Em parte por causa do meu pai, que também é pianista”, confessa. “Juntando isso com a mínima habilidade de escrever bem, sempre fez com que, mais naturalmente, eu quisesse contar histórias através de música e som”, conta.
Contrariamente a muitos cineastas, “por também ser o compositor do filme, [começou] a trabalhar o som e a música desde o início da pré-produção – às vezes ainda antes de começar a fazer testes visuais para o filme”. Partilha que “isso permite, a todos nós, construir algo bastante coeso e orgânico”. “[O som e a animação] estão os dois a crescer ao mesmo tempo e a influenciarem-se constantemente. Só sei contar uma história assim, porque sou muito mau com palavras”, confessa ainda.
Apesar de tudo, afirma não descartar a “possibilidade de experimentar a imagem real”, já que “cada uma tem as suas vantagens”.
Cinema de animação não é (só) para meninos
Sobre animação, o jovem artista assume um obstáculo específico a ultrapassar. “Às vezes sentimos que somos um bocado a mesa dos miúdos”, diz Gonzalez. Persiste, ainda, um estigma de que a animação é para crianças, o que “não é verdade, de todo”. “Aliás, grande parte das exibições em festivais que eu fui, as crianças não podiam entrar na sala, porque são filmes bastante maduros”, reitera.
Acima de tudo, para o realizador, é importante perceber que “a animação não é um género – é um medium, simplesmente; é uma forma de fazer cinema como qualquer outra”. Conclui, no entanto, que “agora as coisas estão a mudar, um pouco lentamente, mesmo com o crescimento de várias séries televisivas de animação” com conteúdos direcionados para um público mais velho.
A animação também é cinema com pessoas. – Bruno Caetano
Ainda assim, já estão a ser dados os “primeiros passos” para “começar a ter uma indústria presente e coesa de animação em Portugal”, diz Bruno Caetano. Um feito conseguido com a “exposição de múltiplas longas metragens portuguesas no cinema”. E exemplifica: “Tivemos agora o “Natal do Bruno Aleixo”, vamos ter o “Nayola”, do José Miguel Ribeiro, “Os Demónios do Meu Avô”, do Nuno Beato, o “They Shot the Piano Player”, que foi coproduzido pela Animanostra e o “Interdito a Cães e Italianos”, coproduzido pela Ocidental”.
A curta-metragem também é cinema – e há muitas obras de qualidade que merecem atenção
Apesar da qualidade, “as curtas, em regra geral, infelizmente, raramente saem do circuito de festivais – tanto que quando uma pessoa quer ver uma tem de ir” a um desses eventos de cinema, lamenta Gonzalez. No entanto, segundo adianta o realizador, o problema não é só português. ” Algumas das obras que me inspiraram mais são trabalhos absolutamente geniais, mas que infelizmente não têm a propagação que mereciam”, aponta. Nesse sentido, uma grande inspiração que referencia diversas vezes é, efetivamente, uma curta-metragem: “La Maison en Petit Cubes” (2008), de Kunio Kato.
Na mesma linha, Bruno Caetano admite que “é muito raro uma curta-metragem ter a possibilidade de passar num canal de televisão aberto, de fazer parte de um canal de streaming”, apontando que “o sistema está montado para outro tipo de produções”.
Contudo, para o produtor, existem formas de superar o problema. “Se este tipo de formatos for um pouco proibitivo para Portugal, porque não fazer exibições antológicas, onde se passam quatro ou cinco curtas-metragens, curadas por alguém?”, diz. Para além disto, crê que “temos de começar a trabalhar mais em longas metragens e séries de televisão” a nível nacional.
Algumas das obras que me inspiraram mais são trabalhos absolutamente geniais, mas que infelizmente não têm a propagação que mereciam. – João Gonzalez
Para o produtor, apesar de tudo, há público para este tipo de filme. “A situação em que “Ice Merchants” está, como curta-metragem individual nas salas de cinema, é atípica, temos consciência disso. Mas está a trazer bons resultados”, afirma. Mais que isso, aponta que existem “pessoas muito interessadas, curiosas para perceber que tipo de cinema autoral está a ser feito em Portugal”.
Nas plataformas de streaming, ainda que pouca, há aposta para este tipo de fita. Por exemplo, “Nestor”, a última curta de Gonzalez, está disponível na Filmin – e, em breve, talvez possamos também ver, de forma ilimitada, a mais recente obra. “Há, neste momento, a possibilidade do “Ice Merchants” passar para uma plataforma de streaming”, diz Bruno Caetano. Apesar de não revelar qual, indica que é algo que “está a ser negociado”.
“Ice Merchants” como chance de saltar para novos desafios
O mérito de “Ice Merchants” não foi apenas fruto do realizador, mas de toda a equipa – que inicialmente foi “pequena, o que é ótimo porque ajuda a manter o nível de qualidade que queremos, neste caso, de animação”, conta Bruno Caetano. “Depois, tivemos uma equipa maior, não só a nível da finalização da arte, mas também a equipa de música e de som”, continua, sublinhando que deve ser criada “uma estrutura que faça com que as pessoas estejam confortáveis”.
A equipa é “fundamental”. Tratando-se de ilustrações, são os “animadores que dão vida às personagens, portanto acabam por ser atores também”, diz o produtor. Deste modo, “a animação também é cinema com pessoas”, reitera.
A envolvência da equipa no projeto faz toda a diferença e os resultados falam por sim: na Letterboxd, a rede social de rating de cinema escolhida este ano para ser a plataforma oficial dos Óscares, “Ice Merchants” foi a curta-metragem de animação com a melhor classificação do mundo.
“Tivemos muitas mais visualizações do filme desde o momento da nomeação porque acho que a Academia, de certa forma, deu um boost”, diz João Gonzalez. Porém, “o prémio mais importante, para nós, é saber que o filme está a chegar às pessoas e que elas também estão a ser tocadas por ele. E que estamos a conseguir transmitir as sensações e os sentimentos que tentámos [criar] desde o início da produção”, completa.
O que segue, depois deste marco? “Já há ideias, mas ninguém sabe nada a não ser o João”, revela o produtor. Apesar de tudo, o objetivo de João Gonzalez é claro: “Continuar a ser verdadeiro com o meu trabalho”.
“Depois de voltar de Los Angeles, quero ficar um mês, espero, mais em ‘retiro espiritual’, um bocado afastado de pessoas. E durante esse período quero começar a fazer a pré-produção da minha próxima curta-metragem. Portanto, se tudo correr bem, quero iniciar agora outra curta”, revela ao JPN. Bruno Caetano está “em pulgas”: “o que vier a seguir, só o público poderá dizer. Não depende de nós, não é?”.
Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira