Os técnicos nacionais têm conseguido um bom desempenho nas principais ligas de futebol do mundo - e, em particular, no Brasil. Se é verdade que a preparação em Portugal difere pouco do resto da Europa, ela está mais avançada do que no outro lado do Atlântico. O JPN entrou em contacto com técnicos, formadores e analistas para entender como funciona o processo de formação de treinadores em Portugal e no Brasil.

relvado com bola em primeiro plano e baliza ao fundo

O trabalho dos técnicos portugueses tem merecido destaque em diversos países. Foto: Pixabay

Em 2004, o FC Porto conquistou a Liga dos Campeões após vencer o Mónaco por 3-0, na Alemanha. O treinador da equipa portuguesa, José Mourinho, conseguiu imenso prestígio com este resultado e declarou a sua intenção de ir em busca de “novos ares” depois do título.

A promessa acabou por concretizar-se e, em junho de 2004, Mourinho foi contratado pelo Chelsea. Nos dois anos à frente do clube londrino, Mourinho venceu por duas vezes a Premier League e uma Copa da Liga. Com o sucesso do treinador em solo britânico, os treinadores portugueses tornaram-se exploradores. Tal qual as grandes expedições de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, as portas do mundo estavam abertas para que os profissionais deixassem a “terrinha” e desbravassem o mundo.

Quase 20 anos depois, imensos casos de sucesso podem ser observados mundo afora. Mourinho ganhou títulos em todos os clubes por onde passou (exceto o Tottenham). Leonardo Jardim foi o primeiro treinador a quebrar a hegemonia do Paris Saint-Germain, depois da venda do clube parisiense ao fundo soberano do Qatar, ao conseguir vencer o campeonato francês na época 2016/17.

Por sua vez, Vítor Pereira foi campeão na China e na Grécia. Pedro Martins venceu três campeonatos gregos consecutivos. Paulo Fonseca e Luís Castro foram campeões ucranianos no Shakhtar Donetsk. Jorge Jesus e Abel Ferreira venceram a Libertadores e o Campeonato Brasileiro por Flamengo e Palmeiras, respetivamente. Muitos outros treinadores conseguiram enorme sucesso.

Tal dominância em redor do globo traz diversas questões acerca da razão disto acontecer. Nomeadamente, sobre a formação dos treinadores em Portugal: será ela diferente em relação ao resto do mundo? Será que os portugueses conhecem métodos de treino únicos ou são mais adaptáveis a diversos locais?

Como funcionam os cursos para treinador em Portugal

Por serem homologados pela UEFA, seria de esperar que os cursos de formação de treinadores facultados em Portugal fossem iguais aos dos restantes membros da federação europeia. No entanto, não é isso que acontece.

O JPN conversou com o treinador Alexandre Brito Nogueira, português que trabalha nas categorias de base do Aston Villa, de Inglaterra. Alexandre explica que os cursos são bem diferentes dependendo do país onde são ministrados. “Na Alemanha, o grau B, por exemplo, é focado na parte física. Em Inglaterra, é muito sobre falar com o jogador, mais pedagógico. Enquanto em Portugal a parte tática é muito mais forte”, disse o treinador.

Alexandre Brito Nogueira é treinador da base do Aston Villa-ENG Foto: Divulgação/Alexandre Brito Nogueira

Os cursos da UEFA são divididos em graus C, B, A e Pro. Cada curso permite trabalhar com uma determinada área do futebol. Na maior parte dos casos, os cursos A e Pro são aqueles que permitem ao técnico trabalhar com equipas profissionais de primeira divisão. É o caso de Portugal, onde para ser treinador principal de uma equipa da Primeira Liga é necessário a licença UEFA Pro.

Alexandre, porém, ressalta que as categorias em que o treinador pode trabalhar com um determinado curso variam de acordo com o país e sua posição no ranking da UEFA. “Em países mais altos no ranking, é necessário UEFA Pro para trabalhar na primeira divisão”, explica o técnico. No Reino Unido, contudo, as exigências são ainda maiores.

No Reino Unido “para se treinar uma equipa de League One (3.ª divisão) é necessário ter-se UEFA Pro”, afirma Alexandre. Para comandar uma equipa principal é também necessária uma licenciatura

No caso português, as licenças A e Pro são dadas em cursos ministrados pela Federação Portuguesa de Futebol. Já as categorias inferiores (C e B2) são ministradas pelas associações distritais. Sérgio Ribeiro, coordenador de futebol da Associação de Futebol do Porto (AFP), em contacto com o JPN, explica que os cursos ministrados pelas associações são os mesmos independentemente do distrito, e que os cursos são aferidos pela Federação Portuguesa de Futebol e pela UEFA.

O sucesso de técnicos portugueses no Brasil

O trabalho dos técnicos portugueses tem-se tornado alvo de diversas análises no Brasil. Jorge Jesus, pelo Flamengo, conseguiu em pouco mais de um ano conquistar cinco títulos, incluindo o Campeonato Brasileiro com recorde histórico de pontuação (o Mister, como é conhecido, assumiu o comando da equipa carioca apenas na 10.ª jornada) e a Libertadores da América, equivalente à Liga dos Campeões no continente sul-americano. Neste período, a equipa de Jorge Jesus só perdeu 4 partidas.

Mister foi o primeiro da “fila” a conseguir tamanho sucesso. Após uma passagem meteórica pelo rubro-negro do Rio de Janeiro, diversos clubes no Brasil foram em busca de treinadores portugueses para o comando de suas equipas.  Abel FerreiraAntónio OliveiraRicardo Sá PintoRenato PaivaPaulo Sousa, Jesualdo FerreiraVítor Pereira, mais recentemente Pepa, anunciado no Cruzeiro, e muitos outros.

Todos foram para o Brasil após a passagem de Jorge Jesus. Contudo, o único caso de sucesso equivalente é o de Abel Ferreira, que ao serviço do Palmeiras faturou sete títulos, com destaque para duas Libertadores, um Brasileirão e uma Copa do Brasil.

Cursos no Brasil têm inspiração na UEFA

Este impacto dos treinadores portugueses no Brasil contribuiu para que se questionasse a qualidade da preparação de treinadores fornecida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A CBF Academy é a divisão de cursos oficial da instituição. Tanto as formações para treinador, como para a gestão dos clubes de futebol são disponibilizados pela entidade.

O treinador Leandro Zago, técnico do Sub-20 do Fortaleza, falou ao JPN sobre este assunto. O técnico explica que a licença A permite treinar em qualquer nível dentro do Brasil, e que a Pro habilita a disputar competições internacionais.

Treinador Leandro Zago com o troféu da Taça BH. Foto: Divulgação/Leandro Zago

Leandro é professor da licença A da CBF e afirma que não existem muitas diferenças entre os cursos brasileiros e europeus. Ele explica que os responsáveis pelos cursos da CBF Academy vieram a países europeus para absorver conteúdos dos cursos UEFA. Os responsáveis “têm a preocupação de trazer professores do curso UEFA para dar aulas aqui, pelo menos uma por módulo”, diz Zago.

O formador clarifica que os cursos da CBF versam diversas áreas, desde marketing, até a questão técnico-tática do jogo, mas apontou que falta aprofundamento em alguns temas. Ele refere que o curso acontece em poucos dias, por isso há pouco tempo para entrar em detalhes de todas as áreas. “Eu sou professor do curso e sinto que tenho pouco tempo”, explicou. “É um curso recente, então ainda está em processo de maturação e evolução”.

Zago, no entanto, aponta que a formação de um treinador é um processo permanente. “Vejo os cursos mais como uma certificação”, afirma. “É todo o conhecimento que você adquire durante seu período como jogador ou durante o percurso académico. Isso sim, forma um técnico”.

Mudanças no futebol brasileiro ocorrem gradualmente

Com todas estas informações, para entender as diferenças entre o trabalho de portugueses e brasileiros no futebol é necessário analisar os aspetos político-sociais de cada país.

Na verdade, é a própria gestão do futebol brasileiro que carece de evolução. A lei da Sociedade Anónima do Futebol (SAF) é ainda muito recente no Brasil.

Até há pouco tempo, todos os clubes de futebol no Brasil funcionavam de maneira associativa, pelo que qualquer pessoa poderia se tornar sócio do clube, e com o tempo poderiam passar a ser sócios-proprietários, o que lhes garante a possibilidade de concorrer à presidência do clube por inteiro.

Só depois da aprovação da lei da SAF, em agosto de 2021, os clubes puderam passar a ser tratados como empresas, com condições de serem vendidos para capital externo e com um proprietário que escolhe quem irá comandar a equipe.

Apesar de tudo não existe um tipo de organização considerado ideal, pois diversos clubes conseguiram sucesso com ambos os modelos. Todos os clubes da Premier League, por exemplo, têm proprietários – e venceram duas das últimas quatro Liga dos Campeões. Por outro lado, Barcelona, Real Madrid e Bayern de Munique, até hoje são clubes de carácter associativo.

No Brasil, até ao momento, não existe uma “liga de clubes” que comande as principais competições do futebol brasileiro. Em 2021, foi enviado um ofício à CBF, com assinatura de 19 dos 20 clubes da primeira divisão do país (o Sport Clube do Recife não assinou pois estava em processo de transição de presidentes), para que as equipas pudessem montar uma liga.

Mais tarde, em maio de 2022, foi lançado o projeto de criação de duas ligas – a Liga do Futebol Brasileiro (LiBRA ) e a Liga Forte Futebol. Contudo, até à publicação deste artigo nenhuma das duas entrou ainda em atividade.

A Forte Futebol tem um total de 26 clubes associados e a LiBRA 18, porém, esta última conta com mais equipes de primeira divisão e com os cinco clubes com mais adeptos do Brasil (Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Vasco).

A maior razão de discussão das ligas é a distribuição de receitas. Enquanto a disputa de carácter institucional não é resolvida, no campo, a falta de uma liga representa um atraso em relação a países como Portugal.

Portugueses levam cultura europeia para o futebol brasileiro

Ao nível tático é também nítida a diferença na metodologia dos treinadores portugueses aplicada no campo, em relação ao que comumente é visto no futebol brasileiro.

Aliás, a componente tática é parte vital dos cursos de treinadores em Portugal. O coordenador da Associação de Futebol do Porto, Sérgio Ribeiro, enviou ao JPN o Regulamento dos Cursos UEFA C e B. De acordo com esse regulamento, a parte técnico-tática é a mais ensinada desde o mais básico grau nas aulas em Portugal.

O analista Fabrício Chicca explica que o treinador brasileiro tem como principal característica um trabalho posicional (não confundir com jogo posicional), enquanto os treinadores portugueses fazem um trabalho tático mais evoluído. “Você vê os bons técnicos brasileiros acertando a posição dos jogadores em campo. Já os portugueses adaptam jogadores para fazer funções que nunca fizeram”, afirmou Chicca.

Chicca ressalta que o processo de ensinar jogadores a fazer coisas novas em campo é demorado. Ele usa o Palmeiras de Abel Ferreira como exemplo, citando uma movimentação típica de Dudu, avançado da formação alvi-verde, que leva consigo o marcador e abre espaço para ultrapassagem de outro jogador.

“Esse tipo de sofisticação tática, você não vê em jogos de times treinados por brasileiros”, afirma Chicca. É possível ver essa movimentação no primeiro gol do Palmeiras na final da Libertadores de 2021, contra o Flamengo.

Já no caso de Jorge Jesus, por exemplo, como principais características do trabalho de campo, houve uma aposta na forte marcação na saída de bola adversária, uma escalação sem um meio-campista puramente defensivo à frente dos centrais e a busca incansável pelo golo, mesmo com conforto no marcador.

O impacto de JJ vai no entanto para além disso. O seu trabalho foi estrutural, impondo mudanças desde o comando no futebol, até a comunicação.

Explicação do lance do gol do Palmeiras.

Modernização é essencial para o futebol brasileiro

O treinador Leandro Zago diz que a chegada dos portugueses ao futebol brasileiro faz parte de um mundo globalizado. Zago fez questão de elogiar a forma de trabalho dos portugueses, dizendo que ajudam a melhorar o trabalho desempenhado no Brasil. “Os estrangeiros desafiam os treinadores brasileiros a criarem novas soluções, novas formas de resolver problemas”, afirmou.

Por seu turno, Alexandre Brito Nogueira, treinador português em Inglaterra, acredita que o Brasil tem potencial para ter uma liga ao nível dos campeonatos francês e alemão, mas que para isso, precisa se modernizar. “O Brasil parou por um momento no desenvolvimento do ensinamento de futebol”, afirma Alexandre. “Se nos anos 80 colocasse o Telê Santana para treinar em Portugal, iria ganhar tudo”.

Telê Santana é tido como um dos melhores treinadores da história do Brasil. O Mestre, como era conhecido, foi campeão brasileiro pelo Atlético-MG em 1971 e foi ídolo no São Paulo, onde conquistou duas Libertadores e dois mundiais de clubes consecutivamente, em 1992 e 93, além de um campeonato brasileiro em 91. Treinou a seleção brasileira em duas Copas do Mundo, montando a lendária seleção de 1982, considerada a melhor seleção brasileira a não ganhar uma copa, e a de 1986.

Embora seja injusto dar um título de “escola portuguesa”, pois existem diversos treinadores com muitos estilos diferentes no país, é possível ver que, desde os estágios iniciais, a preparação envolve muito a parte tática do jogo. Além disso, Portugal é um país pequeno, e é necessária uma expansão de ideias e os portugueses conseguem facilmente adaptar-se a novas culturas.

Simplesmente ter um treinador de nacionalidade portuguesa não é sinónimo de grande desempenho e conquistas. Contudo, é inegável que, ao redor do mundo, os profissionais conseguem se destacar, e alcançar reconhecimento por todos os fãs do desporto mais popular do mundo.

Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro