Em entrevista ao JPN, o ator palestiniano Nabeel Al-Raee explica como é a vida no campo de refugiados de Al-Aroub, o que sentiu em relação aos ataques do Hamas no dia 7 de outubro e as suas convicções em relação ao futuro da Palestina. O apoio ao Hamas aumentou na Cisjordânia, revelam estudos de opinião.

Nabeel Al-Raee é um ator palestiniano que vive na Cisjordânia. Foto: Nabeel Al-Raee/Facebook

Nabeel Al-Raee é um ator palestiniano que nasceu e cresceu num campo de refugiados na Cisjordânia. Em 2016, passou pelo Porto para apresentar o trabalho da companhia de teatro da qual era diretor artístico, The Freedom Theatre, e falou com o JPN a propósito. Foi casado com a atriz portuguesa Micaela Miranda, com quem tem duas filhas, e juntos viajaram pela Europa para apresentar o seu trabalho e explicar qual o papel do teatro na resistência palestiniana.

Mapa de Israel e dos Territórios Palestinianos, com a Faixa de Gaza junto ao Mediterrâneo e a Cisjordânia, a norte. É na Cisjordânia que se localiza o campo de refugiados de Al-Aroub, onde vive Nabeel Al-Raee. Foto: JRC, DG, ECHO, ECCC BY 4.0

Com os ataques de 7 de outubro do Hamas e o despertar de uma nova guerra em território palestiniano, desta feita na Faixa de Gaza, o JPN procurou o ator para tentar perceber como é viver por estes dias na Cisjordânia, outro território palestiniano (ver mapa) que não está em guerra com Israel, mas onde também se regista uma intensificação militar israelita e onde já terão morrido entre 250 a 300 palestinianos, desde o início das hostilidades. Em Gaza, já terão morrido, até esta quinta-feira, mais de 20 mil pessoas, segundo as autoridades locais.

Da “Nakba” à atualidade

O provérbio popular é antigo: “a felicidade de uns, pode ser a desgraça dos outros”. Quando terminou a guerra árabe-israelita, em 1948, o estado de Israel celebrou a sua independência. Para o povo palestiniano que residia no então Mandato Britânico da Palestina começou aquilo a que chamam Nakba”, em português, “a catástrofe”.

De forma a responder à crise de refugiados que deslocou aproximadamente novecentos mil palestinianos das suas residências, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla inglesa) deu-lhes uma tenda: “A ONU, no âmbito de um programa especial chamado UNRWA, forneceu tendas às pessoas para que permanecessem lá por um período temporário, para que esperassem até que pudessem regressar às suas aldeias de origem”, refere Nabeel Al-Raee, ator palestiniano. Assim, o pai e o avô de Nabeel partiram da localidade que é hoje conhecida como Kiryat Gat, em direção ao campo onde se tornaram refugiados, e onde nasceu Nabeel, o campo de Al-Aroub. O seu coração e os seus olhos, diz ao JPN, ainda estão virados para a aldeia onde moravam o avô, o pai e a família.

O campo de refugiados de Al-Aroub é a morada de 15.642 pessoas – entre as quais aproximadamente cinco mil crianças – numa área inferior a 250 metros quadrados, segundo dados da UNRWA. É uma área densamente povoada, acima das mais povoadas do mundo. A título comparativo, a cidade mais populosa do mundo, Daca, no Bangladesh, tem 44 habitantes por metro quadrado; Al-Aroub tem cerca de 62.

À semelhança de outros campos de refugiados da Cisjordânia, a elevada taxa de desemprego é também um desafio constante em Al-Aroub e muitos refugiados continuam a viver em abrigos com condições de vida precárias. A UNRWA avisa que “a rede de esgotos precisa de reabilitação“. Caso não ocorra, o inverno pode ser marcado pelo risco de inundações aumentado pela dificuldade de escoar as ruas.

Mas, para Nabeel, estes não são os maiores problemas: “Não se trata de estar em locais sobrelotados, porque se olharmos ao redor do mundo encontraremos muitos. Mas eles não estão presos. Não são humilhados, não são fiscalizados diariamente, não são parados, não são impedidos de ir trabalhar, não são impedidos de sonhar”, diz o ator, acusando as autoridades israelitas de abusos: “Podemos ser presos por não ter o cartão de identidade”, diz.

O próprio recorda já ter sido detido por 36 dias sem acusação formal pelas forças de segurança israelitas em junho de 2012, “suspeito de atividades ilegais” não especificadas na altura, para ser interrogado sobre o assassinato, em 2011, do ator e realizador israelo-palestiniano Juliano Mer-Khamis, um dos fundadores do Freedom Theatre. A detenção levou à ação de 19 deputados portugueses junto da embaixada israelita, que apelaram para que Nabeel fosse autorizado a falar com a esposa portuguesa. Em 2016, contou ao JPN que o interrogatório feito pela polícia israelita questionava essencialmente o Freedom Theatre e as relações entre os membros do grupo de teatro.

O “A, B, C” da Cisjordânia

Divisão da Cisjordânia, segundo os Acordos de Oslo (1995) Infografia: SoWhAt249/Wikimedia CommonsCC BY-SA 4.0 DEED

Al-Aroub é adjacente à Estrada Nacional 60, que liga Jerusalém e Hebron, e é por isso frequentemente usada por israelitas. O campo está localizado perto dos assentamentos israelitas de Efrat e Migdal Oz, a norte, e Gush Etzion e Beit el Baraka, a oeste. Situa-se principalmente na área B, embora o troço ao longo da Estrada 60 se enquadre na área C.

Nabeel explica que mora na área C: “De acordo com os Acordos [de Paz] de Oslo [assinados em 1993], o que fizeram foi dividir as aldeias e cidades palestinianas em áreas diferentes, A, B e C. ‘A’, para ficar, supostamente, sob o domínio da Autoridade Nacional da Palestina – mas na verdade não, porque eles [israelitas] podem facilmente entrar em qualquer área e prender e matar pessoas, consideradas como estando sob a alçada da Autoridade Nacional da Palestina; A ‘área B’ é uma área partilhada, é isso que é considerado; e a ‘área C’ que está sob o domínio militar israelita. Portanto, estamos rodeados de colonatos aqui na minha região, no meu campo de refugiados, e também somos governados pelas forças militares israelitas. E, ao mesmo tempo, somos governados pela Autoridade Nacional da Palestina.”

Isto resulta, de acordo com a UNRWA, em inúmeros confrontos entre refugiados palestinianos e israelitas, caracterizados pelo uso frequente de munições reais, gás lacrimogéneo, bombas de som e balas revestidas de plástico pelas forças de segurança israelitas. Os ataques geralmente ocorrem durante a noite, muitas vezes nas primeiras horas da manhã, quando os soldados entram nas casas. A consequência, segundo a agência, são “altos níveis de ansiedade, hiperexcitação e sofrimento psicológico”.

Em 2022, o campo de refugiados de Al-Aroub teve, de longe, o maior número de confrontos (161) e operações envolvendo as forças de segurança israelitas (202), resultando em 81 detenções, e o número de crianças detidas esteve sempre entre os mais elevados nos campos de refugiados da Cisjordânia. A UNRWA afirma que “a experiência da detenção pode ser uma experiência assustadora para as crianças, resultando em trauma”.

A taxa de incidentes com gás lacrimogéneo é também a mais elevada entre os campos de refugiados. O seu uso tem afetado as instalações da UNRWA, e “os refugiados que vivem em casas perto da estrada e de outros pontos de confronto estão cronicamente expostos ao gás lacrimogéneo, causando preocupações de saúde”, segundo a organização.

Os encerramentos da entrada principal do campo pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) tornam a vida quotidiana no campo mais difícil para os residentes. “Cortaram as comunicações entre todos os campos de refugiados, aldeias e cidades. A liberdade de movimento não existe, não é seguro, é muito perigoso agora circular por causa dos colonos, que estão armados, e foram armados pelo que é chamado de governo israelita. Deram-lhes armas, e eles atacam as pessoas por todo o lado”, acusa Nabeel. O perfil do campo de refugiados de Al-Aroub feito pela UNRWA também menciona que as FDI instalaram uma torre militar em frente ao campo, e esclarece que “embora frequentemente associadas à volatilidade da situação de segurança, as medidas podem ser consideradas como uma punição coletiva dos residentes dos campos, o que é ilegal à luz do direito internacional”.

Assim, aos olhos de Nabeel, a principal dificuldade dos palestinianos na Cisjordânia é uma: “existir”. “Esta é a principal dificuldade que enfrentamos. Existir. Eles estão a lutar contra nós por existirmos. Por sermos. Por praticarmos a nossa cultura, a normalidade. O normal de qualquer ser humano: acordar, lavar o rosto, escovar os dentes, tomar café, ir trabalhar, voltar para casa feliz, ver a família, lidar com os problemas normais que qualquer ser humano deste mundo enfrenta”, afirma o ator, acrescentando que sente ainda hoje ser problemático identificar-se como palestiniano.

7 de outubro, o Hamas e a Autoridade Nacional da Palestina

Apesar da surpresa manifestada pelos embaixadores de Israel e da Palestina, em entrevista ao JPN, perante os trágicos eventos do dia 7 de outubro, quando militantes armados do Hamas entraram no território de Israel e mataram 1.400 pessoas, Nabeel Al-Raee garante que estes acontecimentos não admiraram os civis da Cisjordânia: “O 7 de outubro é algo que nós, como palestinianos, esperávamos que acontecesse”, garante Nabeel, para quem, entre acusações de “crimes” por parte de Israel, estes eventos não marcam “o começo” de nada: “Para entender, temos de voltar às raízes de quando o problema realmente começou.”

O ressentimento perante Israel e as autoridades israelitas é notório. Com os braços cruzados no peito, Nabeel arrisca dizer que os palestinianos ficaram orgulhosos da sua resistência armada depois de anos em sofrimento e, emocionado, questiona o que mais é preciso: “Acordos de Oslo? Comemoramos nas ruas que finalmente nós, povo palestiniano, conseguiríamos os nossos direitos e teríamos a dignidade e o respeito que deveríamos merecer, há anos. Não funcionou. Negociações há mais de 30 anos. Nada muda, na verdade eles estão a roubar mais terras, a colocar mais pessoas na prisão, a matar mais pessoas. Portanto, a resistência é a chave. Morreremos em pé. Lutaremos até a última gota das nossas vidas”.

A opinião de Nabeel pode soar extrema, mas estará longe de ser única ou isolada. Sobretudo depois do dia 7 de outubro e do início da guerra em Gaza, como indicam diferentes estudos de opinião. Uma sondagem feita pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research (PCPSR, na sigla inglesa), partilhada pelo jornal israelita “Times of Israel“, revela que 72% dos inquiridos consideram correta a decisão do Hamas de lançar uma ofensiva contra Israel, e o apoio à resistência armada aumentou dez pontos percentuais quando comparado com o período precedente à guerra, “com mais de 60% dos inquiridos afirmando ser a melhor maneira de terminar a ocupação israelita”.

O inquérito conduzido pelo PCPSR indica que “o apoio ao Hamas mais do que triplicou na Cisjordânia”: 75% dos inquiridos na Cisjordânia preferiam ver o Hamas governar a Faixa de Gaza depois da guerra. No entanto, em Gaza, esse aumento foi pouco significativo: apenas 38% dos inquiridos tem a mesma opinião. O PCPSR realça que “o apoio ao Hamas geralmente aumenta temporariamente durante ou imediatamente depois de uma guerra, e volta ao nível anterior alguns meses depois do fim da guerra”.

Para Nabeel Al-Raee, o Hamas é o verdadeiro representante do povo da Palestina, em oposição à ANP: “Eles não nos pertencem, não nos representam”. A ANP, diz, está a “ajudar os ocupantes a manter a ocupação”, colocando “posições, autoridade e poder” acima do interesse dos palestinianos. “Não nos representam e nunca nos representarão depois de tudo o que aconteceu”, atira.

Na mesma linha, a sondagem realizada pelo PCPSR mostra que o apoio à Autoridade Nacional da Palestina diminuiu significativamente: “os pedidos de dissolução aumentaram aproximadamente 60%, a maior percentagem alguma vez registada em sondagens da PCPSR”. Também o apoio ao Presidente Mahmoud Abbas e ao seu partido, o Fatah, diminuiu, com pedidos para a sua demissão a aumentarem para cerca de 90%.

Apesar do compromisso da ANP de agendar eleições (as últimas foram realizadas em 2006), Nabeel considera que os palestinianos já não sentem esperança num movimento não violento que seja capaz de alcançar a paz para a região, porque não conhecem o conceito de paz. Nunca foi praticado na sua terra natal. Porque nunca lhes foi apresentado de uma forma em que pudessem acreditar, praticar, ou ter esperança nisso.

O ator lamenta a “hipocrisia” dos governos e dos “beneficiários” da guerra no Médio Oriente, que lhe dizem que deve esquecer a história: “Essa é a mensagem que querem passar, dizem para esquecer a história. Não, não vou esquecer a história, sinto muito. O primeiro argumento que apresentaram, como sionistas, é que esta é a terra prometida por Deus, que lhes foi dada há três mil anos. Como querem que eu esqueça a história da minha aldeia e do meu povo e que eu desista de lutar?”. Por outro lado, Nabeel sente que que as pessoas estão a “acordar”, a dizer não ao que está a acontecer em Gaza e a manifestar-se nas ruas.

É por isso que acredita que a Palestina poderá ser o “centro de mudança de toda a estrutura mundial”. Nabeel afirma que o seu país está a destapar o mundo e a mostrar quem está do lado certo e quem está do lado errado. Garante que se a Palestina fosse livre, o mundo seria livre. Não importa a etnia, a cor, a religião. Não importa fronteiras, passaportes. Afinal de contas, diz o ator palestiniano, a humanidade é a sua causa e espera que um dia nos comecemos a sentir uns aos outros, a sentir a dor do outro, e a “apoiar-nos uns aos outros como seres humanos. Mesmo uma palavra, vinda do coração, já é uma grande ajuda”, conclui.

Editado por Filipa Silva

Artigo realizado no âmbito da cadeira de TEJ Online – 2.º ano