A exposição Livros de Cabeceira, presente na Livraria Lello desde 13 de janeiro deste ano, tem levantado questões. “Porque é que os autores escolheram estas obras de entre as inúmeras que já leram?”, perguntam visitantes que por lá passam.

De forma a esclarecê-los, a mostra é acompanhada por três sessões de conversas com escritores, artistas, políticos e cineastas. Na quinta-feira, dia 15 de fevereiro, foi a vez de Miguel Miranda, Rui Lage, Valter Hugo Mãe e Adélia Carvalho responderem ao desafio que a Lello lhes lançou: “E se a vossa cabeceira falasse?”.

A Livraria Lello perguntou a Miguel Miranda, Rui Lage, Valter Hugo Mãe e Adélia Carvalho que livros têm na cabeceira.

A Livraria Lello perguntou a Miguel Miranda, Rui Lage, Valter Hugo Mãe e Adélia Carvalho que livros têm na cabeceira. Foto: InÊs Aparício

Ao contrário do planeado, Álvaro Magalhães e Mário Cláudio não puderam estar presentes. No entanto, deixaram as suas explicações num livro que pode ser consultado na livraria e museu.

Livros com crimes pousam na cabeceira de Miguel Miranda

O escritor e médico foi o primeiro a ser interpelado. Miguel Miranda não procurou os grandes clássicos da literatura, mas obras que, desde a sua infância, tivessem tido algum relevo na sua vida.

Tendo vivido em 17 casas diferentes, a sua biblioteca foi perdendo alguns livros, de modo que a sua escolha acabou por ser limitada pelas obras que ainda tinha em casa. Mas há um que tem consigo praticamente desde que nasceu. A Antologia Policial de Ross Pynn foi um “catrapázio” que leu quando tinha 8 anos.

Com as mudanças de casa, alguns livros foram ficando pelo caminho, mas Ross Pynn continua a acompanhá-lo.

Trouxe também A 3ª Visão, de Lobsang Rampa, que descrevia o Tibete como um “lugar mágico”, o que lhe “excitou a imaginação”.

Releu-o há pouco tempo, uma vez que lhe ficara na cabeça desde criança, e apercebeu-se das grandes mudanças que aconteceram no local onde a história se passa. Alepo, em O Crime no Expresso do Oriente, é descrita como “uma cidade rica, cosmopolita, um encontro de culturas”, enquanto que o cenário agora é de destruição.

A escolha literária de Rui Lage que poderia ter sido diferente

“Bastava que tivesse mudado a pressão atmosférica, uma pequena variação na humidade do ar” para que Rui Lage tivesse escolhido outros livros, admite.

O seu primeiro impulso foi levar Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, “mas como vinha a pé…” . O autor “quis trazer alguma coisa de Fernando Pessoa, mas teria de trazer toda a sua obra, porque não conseguiria selecionar apenas uma”, adiantou.

No entanto, acabou por escolher livros que “podem ajudar a compreender” a sua poesia. O universo de Aquilino Ribeiro funde-se na sua poesia e Birds, Beasts and Flowers influenciaram a escrita do seu livro Berçário, publicado em 2014.

Miguel Miranda e Rui Lage foram dois dos escritores que falaram sobre os os livros que têm na mesinha de cabeceira no primeiro ciclo de conversas esenvolvido pela Livraria Lello.

Miguel Miranda e Rui Lage foram dois dos escritores que falaram sobre os os livros que têm na mesinha de cabeceira no primeiro ciclo de conversas esenvolvido pela Livraria Lello. Foto: Inês Aparício

O binómio campo/cidade que, de acordo com Rui Lage, encontra “uma espécie de clímax” em A Cidade e as Serras, é também problematizado na poesia do autor. Ao contrário do que acontece na obra de Eça de Queirós, no livro do também deputado no Parlamento Europeu é o campo uma “ilusão perversa”.

A novidade que Lage traz em julho, o romance O Invisível, poderá ter sido influenciada por Edgar Allan Poe. Os contos deste autor foram a escolha mais óbvia para estar na cabeceira de Rui Lage, uma vez que lhe abriu portas para outro tipo de ficção quando tinha ainda cerca de 14 anos.

Uma pilha de 20 livros e os arrependimentos de Valter Hugo Mãe

“A minha mesinha de cabeceira é tragicamente pequena e a culpa é minha, porque fui eu que a comprei”, começa por descrever o escritor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor.

O tamanho da mesa fá-lo tomar constantemente decisões acerca dos livros que quer ter efetivamente à sua beira. Mas por vezes é empilhada em cima da sua cabeceira uma torre de 20 livros.

Quando foi contactado por Maria, a organizadora do evento, lembrou-se imediatamente dessa pilha de livros. No entanto, já se apercebeu que foi “uma porcaria de uma decisão, porque esses são ainda, de facto, os livros que quer ali ter”.

Valter Hugo Mãe tirou da sua pilha de livros um livro de poesia, um ensaio e um guia de música.

A poesia de Eduarda Chiote agrada-lhe bastante pela sua franqueza, frontalidade e força impressionante, e, por isso, não poderia deixar de estar nas suas escolhas.

Também O Conceito de Deus depois de Auschwitz, um ensaio de Hans Jonas que comprou quando visitou o campo de concentração polaco, figura nas escolhas de Valter Hugo Mãe.

A última preferência do escritor foi um guia de música de câmara que gosta de ler enquanto ouve o conteúdo relativo ao texto. Como considera que chegou mais tarde à música clássica do que queria, o autor sente que agora precisa de livros para compensar esse tempo perdido.

Ainda que arrependido, já decidiu que os três livros que emprestou à Lello para a exposição vão voltar para a pilha que tem na mesinha de cabeceira, porque ainda precisa de “matutar sobre eles loucamente”.

Os livros que marcaram a vida de Adélia Carvalho

Se a cabeceira da escritora de livros infantojuvenis falasse lembrava-a de se reinventar, quebrar barreiras, e, acima de tudo, manter o espírito de criança.

O Inventão, de Manuel António Pina, foi uma das obras que marcou Adélia Carvalho, pela capacidade que tem de lhe mostrar a capacidade que temos de “nos inventarmos e reinventarmos, de inventarmos a linguagem, de inventarmos palavras”. É um livro a que recorre sempre que quer escrever, uma vez que a relembra de que tudo é possível.

A obra de Álvaro Magalhães, que é para a escritora o melhor autor de literatura infantojuvenil, agrada-lhe pela candura que imprime nas suas histórias. Para a Livraria Lello traz O Brincador, que considera importante guardar no pensamento.

Valter Hugo Mãe e Adélia Carvalho têm as suas escolhas expostas na exposição Livros de Cabeceira.

Valter Hugo Mãe e Adélia Carvalho têm as suas escolhas expostas na exposição Livros de Cabeceira. Foto: Inês Aparício

Gabriela, Cravo e Canela foi o primeiro livro que a marcou sem o ter lido “foi o meu primeiro livro a sério”. Via a novela quando era pequena na única casa com televisão na aldeia onde morava, a sua. O livro serviu de tema de conversa entre a escritora e o marido na altura em que se estavam a conhecer. Foi uma forma de se aproximarem pelas palavras.

O último livro apresentado por Adélia Carvalho foi escrito por outro convidado do painel. O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, é “como uma bíblia”, que a ensina “que é possível quebrar com os preconceitos” e “criarmos afetos e famílias verdadeiras através destes”.

A exposição que dá o mote a esta série de conversas termina a 30 de março.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro