A eutanásia já foi discutida pelos portugueses e até em parlamento, mas há dois anos cinco mãos no ar bastaram para impedir que a lei que despenalizaria a morte assistida avançasse. Esta quinta-feira (20), a eutanásia volta a ser discutida na Assembleia da República (AR) e as expectativas são favoráveis aos partidos defensores da legalização – PS, Bloco, PAN, Verdes e Iniciativa Liberal apresentaram as cinco propostas que vão a votos.

O lado contra não deixa de ter peso e a pressão para um referendo à eutanásia é a principal aposta: o Chega foi o primeiro partido assumidamente pró-referendo; o PSD parece ter apenas Rui Rio a hesitar no assunto; e Francisco Rodrigues dos Santos, presidente do CDS-PP, afirmou que o partido apoia o referendo caso a iniciativa popular contra a despenalização reúna as 60 mil assinaturas necessárias para ser votada na AR. A petição pública online impulsionada pela Federação Portuguesa pela Vida tem já cerca de 19.500 assinaturas.

Já que o referendo só avança se a lei for aprovada, cabe ao Parlamento ditar o próximo passo no debate desta quinta-feira. Caso o diagnóstico se cumpra, a lei da despenalização da eutanásia vai ser aprovada pela maioria de esquerda e, aí, Marcelo terá duas opções: vetar a lei ou notificar o Tribunal Constitucional.

A “(in)constitucionalidade” do direito à vida

Além de líderes de várias ordens religiosas, a Ordem dos Médicos também segura a bandeira do contra. O atual bastonário, Miguel Guimarães, e os anteriores líderes daquela instituição foram recebidos por Marcelo Rebelo de Sousa no início desta semana. Ao JPN, o bastonário recorda uma “violação” de um artigo do Código Deontológico que considera ser “bem explícito: o médico deve respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida e ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia”. Contactada pelo JPN, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) não se manifestou quanto à posição face à eutanásia.

Para a comunidade médica, este tema abre uma ferida de consciência. O jornal Público revelou, na manhã desta quarta-feira (19), que apesar de pouco mais de metade dos profissionais de saúde declarar ser a favor da eutanásia, uma percentagem substancialmente menor admite praticar a morte assistida num doente. Os dados são de um estudo conduzido pelo diretor dos cuidados paliativos do IPO do Porto, José Ferraz Gonçalves.

Ao JPN, o constitucionalista Paulo Otero, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) e autor do livro “Eutanásia, constituição e deontologia médica”, considera que os profissionais de saúde não podem estar implicados neste procedimento. “Uma coisa é eu poder pôr termo à minha vida, outra é eu poder exigir que o Estado crie para os médicos o dever de pôr termo à vida”, justifica e acrescenta que os médicos “têm um compromisso com a vida, não com a morte”, e portanto não podem ser tornados em “carrascos por lei”.

Além da implicação dos médicos, Paulo Otero põe em causa a constitucionalidade da lei. “A Constituição não permite a eutanásia e, mesmo que permitisse, a deontologia médica vedaria a intervenção dos médicos“, assinala. Contudo, Miguel Guimarães já confirmou que, apesar de recusar alterar o Código de Deontologia dos Médicos, a lei, caso seja aprovada, é soberana. Isto é, um médico que pratique a eutanásia será criminalizado pela sua ordem, mas em contrapartida descriminalizado do ato pela lei em vigor.

Este argumento da inconstitucionalidade, desvalorizado pelo próprio presidente do Tribunal Constitucional, prende-se com a forma como o direito à vida é elencado na Constituição. Nos países que legalizaram a eutanásia, como a Bélgica ou os Países Baixos, a Constituição proclama “o direito à vida”. Porém, a lei portuguesa vai mais longe e diz que “a vida humana é inviolável”. Para Paulo Otero, a conclusão é clara: “se a lei for aprovada, a lei é inconstitucional”.

O constitucionalista refere que “ninguém”, nem mesmo os médicos, “pode estar habilitado a pôr termo à vida de outra pessoa” e acrescenta que “a liberdade ou a autodeterminação de cada um só existe se respeitar a própria vida”.

Já Paulo Jorge Santos, um dos cem subscritores do Manifesto em Defesa da Despenalização da Morte Assistida que, em 2016, iniciou o debate da eutanásia na AR, defende que a morte antecipada dá dignidade à vida. “A eutanásia reflete o valor da liberdade individual e da autodeterminação consciente da vida de cada um”. No entanto, ressalva que “a eutanásia não é um valor absoluto”.

Só se acaba o sofrimento se se acabar a vida?

O respeito à vida são as palavras de ordem no serviço de Margarida Alvarenga. Enfermeira nos cuidados paliativos do IPO-Porto há 26 anos, chegam e sobram-lhe “os dedos de uma mão” para contar os casos em que doentes pediram para morrer, diz. “Quando o fizeram, eram recém-admitidos no serviço e estavam ainda numa situação de intenso sofrimento. Depois de terem estes sintomas controlados, nunca mais voltaram a pedir que alguém os matasse”, sublinha.

A falta de financiamento dos Cuidados Paliativos (CP) é outro argumento recorrente quando se fala de eutanásia. Para Paulo Jorge Santos, também professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e membro do Movimento Cívico Para a Despenalização da Eutanásia, “uma coisa não termina a outra; os Cuidados Paliativos devem ser desenvolvidos mas isso não irá impedir que, em casos específicos, as pessoas desejem antecipar a sua morte”.

Miguel Guimarães lamenta que os deputados queiram “começar a casa pelo telhado”, considerando “incompreensível” pôr-se a morte à frente dos cuidados. “Gostávamos de ter visto os deputados a defender os cuidados paliativos com a mesma energia”, admite o bastonário.

Na Bélgica, um dos países pioneiros na legalização da eutanásia (a lei remonta a 2002), foi apurado num estudo publicado na revista Paliative Medicine que 70% das pessoas que solicitaram eutanásia provinham do serviço de CP – é também o quinto país a nível mundial com melhores Cuidados Paliativos.

Apesar de concordar que os CP “não são uma alternativa à eutanásia”, Margarida Alvarenga defende que “se se incrementassem as equipas e se formassem mais os profissionais nesta área do cuidar, as pessoas provavelmente sentir-se-iam mais acompanhadas e não pediriam para morrer“.

Um estudo do Observatório Português dos Cuidados Paliativos divulgado em janeiro alertava para seis distritos sem equipas de assistência a doentes em sofrimento permanente, bem como uma cobertura a nível nacional que nem os valores mínimos atingia, em 2018. Margarida Alvarenga corrobora: “apesar de haver muitos profissionais com formação avançada na área dos cuidados paliativos, não podem exercer nas equipas porque elas não existem”.

Os cuidados paliativos, geralmente encarados como cuidados de fim de vida, são também direcionados a doentes com prognósticos extensos em tempo, em contextos de sofrimento constante e ausência de cura. Os profissionais de saúde neste serviço agem de forma a atenuar os sintomas de dor física mas também psicológica de forma a ser proporcionada “a melhor qualidade de vida que seja possível dar”.

Para Margarida Alvarenga, a eutanásia não é a solução para estes doentes. “Os cuidados paliativos, ao contrário da eutanásia, promovem a vida”, refere a enfermeira. “A eutanásia acaba com a vida, não acaba com o sofrimento. São coisas diferentes”.

Artigo editado por Filipa Silva.