“Subam ao sexto andar do edifício”, indica-nos o segurança. Estamos na parte velha do Hospital de Santo António, erguida com aquela pedra velha, suja, de granito, que encontramos em muitos dos locais mais antigos da cidade do Porto.

Depois de alguns avanços e recuos lá damos com o elevador, mas a mão de um cartaz pendurado nas portas faz-nos parar, para ler duas frases escritas a vermelho: “Acesso a zona Covid. Entrada restrita”. Hesitamos, mas o segurança insiste para subirmos. “Não se preocupem que está tudo desinfetado“.

Somos levados pelo maquinismo e há um silêncio perturbador que cresce à medida que os andares inferiores são deixados para trás. As roldanas e cabos parecem afinados na perfeição, mas há um sentimento de desconforto que não se consegue evitar.

Este não é um elevador como os outros. Marcado, riscado, o painel dos botões amolgado pelos choques constantes das macas em que se transportam os doentes. Entraram aqui alguns dos mais de 2 mil doentes infetados com Covid-19 que passaram nos últimos 12 meses por esta unidade de saúde.

Uma guerra que avaria as pessoas e os objetos

Ao chegar ao destino, as portas abrem-se para um guichet de recepção de onde parte um corredor com entrada para diversos gabinetes. Mais uma vez, reina uma certa tranquilidade.

O único rasto do furacão que por aqui passou nas últimas semanas é uma fila de macas estacionadas contra as paredes, que espera quem as transporte para o estaleiro. Sobre cada uma, um papel indica: ‘Avariado’ e o motivo da avaria. Marcas das batalhas travadas contra o vírus.

Se tivéssemos aqui vindo em finais de janeiro, princípios de fevereiro, o ambiente teria sido bem diferente. Nas alas Covid-19 chegaram a estar ao serviço, em simultâneo, cem profissionais. Um número elevado, mas necessário, para dar conta das 184 camas que estiveram em funcionamento no pico máximo da crise – distribuídas por seis enfermarias – e das cinquenta vagas disponíveis em Unidades de Cuidados Instensivos (UCI), que quase esgotaram.

Rui Sarmento e Castro recebe-nos no seu gabinete ao fundo do corredor e a conversa começa precisamente pelas dificuldades criadas pelo pico de infeções ocorrido nas últimas semanas.

“Estivemos mesmo, mesmo no limite.”

O director de infecciologia admite que chegou a haver “muita preocupação”, porque a situação foi muito difícil, especialmente na UCI onde estiveram “mesmo, mesmo no limite”.

“O problema, que existe em todos os lados, é que os internamentos em UCI são muito mais longos pelas técnicas que exigem e porque a recuperação dos doentes é muito longa”, começa por explicar ao JPN.

Para que se tenha uma noção de como a doença impacta de forma diferente a enfermaria e a UCI, estavam internados em enfermaria, no final da semana passada, dezoito pessoas com casos ativos de Covid, uma pequena percentagem da lotação máxima do hospital. Contudo, em UCI estavam ainda internadas cerca de vinte pessoas. Com o agravamento do estado do doente, o período de recuperação aumenta de forma exponencial.

Duas vagas (em vez de três) e uma receita para evitar novos dissabores

Para o professor Rui Sarmento e Castro devemos falar de duas vagas e não de três: o que se passou em janeiro/fevereiro foi o culminar natural de uma tendência para ter “crescentemente mais casos” iniciada em setembro.

A segunda vaga foi muito pior que a primeira. Entre março e abril registaram-se 333 internamentos em enfermaria e mais quarenta casos que passaram pelos cuidados intensivos. Nesta segunda fase – que começou então em setembro, na opinião do professor -, as enfermarias e UCI registaram quase mil e seiscentos doentes.

O princípio dos diretores clínicos e da administração foi sempre o de que “ninguém fica na rua”. Encontraram-se diversas estratégias para alargar as camas disponíveis, como a definição de uma metodologia de tratamento com oxigénio que dispensou a transferência para UCI (libertando assim lugares para casos mais graves) e a criação de uma enfermaria com 24 camas em contentores na área exterior do edifício.

“O que nos preocupa é o desconfinamento. Na minha opinião, tem que ser feito com todo o cuidado e lentamente.”

“As coisas estavam nessa altura muito complicadas. Felizmente, não perdemos a calma. Preocupados sim, mas conscientes de que íamos levar esta luta a bom porto”.

Os profissionais estão a aprender com as vagas sucessivas que têm aparecido. As estruturas de saúde estão cada cada vez mais bem preparadas e organizadas para tratar os doentes, mas é importante que a população interiorize também o maior conhecimento que vamos tendo sobre a doença.

Um dos problemas de abril, no entender do médico, foi reabrir o normal funcionamento da sociedade demasiado depressa. “O que nos preocupa é o desconfinamento. Na minha opinião, tem que ser feito com todo o cuidado e lentamente.”

Se possível, acompanhado de um plano de testagem. “Conhece alguma política de testagem no país?”, pergunta, em tom crítico. “Fazer testagem à toa não tem interesse”.

É necessário, ainda, fazer algumas ressalvas para evitar a todo o custo o chamado cansaço pandémico. Primeiro, confinar não significa que as pessoas devam ficar fechadas em casa: “As pessoas devem arejar”, não podem é retomar as atividades normais de socialização e convívio. 

Em segundo lugar, a questão da aprendizagem merece um cuidado específico, pois é inegável (diz Rui Sarmento e Castro, baseando-se na sua própria experiência como professor) que “é importante que os alunos tenham aulas presenciais, porque nós aqui também damos aulas e os alunos a quem demos aulas presenciais tiveram, na minha opinião, resultados melhores do que aqueles que só tiveram aulas pelo Zoom”.

As variantes que podem deitar tudo por terra

Já temos alguns conhecimento importantes sobre o vírus: “qual o mecanismo que leva à morte das pessoas” e “quais os fatores de risco”. 

O avanço científico sobre o tratamento da doença posterior à infeção continua, no entanto, a progredir lentamente. Para além das vacinas e do tratamento com oxigénio, “não temos grandes armas, à excepção dos corticóides, que está comprovado que são eficazes”, melhorando “a progressão do vírus e atenuando os sintomas”.

Sobre o Remdesivir, droga que o Infarmed está a comprar e que alguns hospitais, como é o caso do Santo António, estão a usar, não existem certezas: é aplicado em conjunto com os corticóides e por isso é que a sua eficácia “é mais difícil de medir”.

“Não temos grandes armas, à excepção dos corticóides que está comprovado que são eficazes.”

Com o processo de vacinação há uma nova janela de esperança que se abre, mas é preciso estar consciente que a pandemia não fica resolvida: “Não sabemos se estas vacinas que temos, e as que vamos ter, são eficazes contra as variantes do vírus”.

As variantes são mesmo a principal incógnita relativamente à evolução que este vírus irá ter num futuro próximo: “as variantes resultam de mutações, alterações da composição do genoma, que no fundo é o coração do vírus. Quando há alterações, há uma mudança da agressividade que pode ser no sentido de aumentar ou atenuar”.

O chamado “vírus selvagem”, isto é, o original, que apareceu na China “foi vencido pela variante inglesa”, que é agora dominante. Existem alguns indicadores de que este vírus inglês pode ter sido responsável por “um aumento da letalidade”.

As variantes sul-africana e brasileira podem também agravar a mortalidade e as sequelas da Covid-19. É uma questão que permanece em aberto, mas a relação histórica de proximidade entre Portugal e estes países aconselha a que haja uma certa prudência na forma como avaliamos a fase actual de progressão da pandemia.

Há sequelas que podem ficar para toda a vida

Os riscos para os infectados são  enormes: “Felizmente que a taxa de mortalidade não é muito alta, mas muitas pessoas ficam também com sequelas”. O chamado Covid longo (quando o doente, deixando de ter a infecção, continua a apresentar sintomas da doença, como a chamada pneumonia organizativa) pode mesmo prolongar a crise de saúde pública por vários anos depois de terminar a pandemia.

É necessário pensar na forma como o sistema de saúde deverá dar resposta a estes casos: “Em princípio, serão seguidos pelas nossas consultas externas. Se for necessário e se houver alguma estrutura montada aqui no Porto para receber doentes desse tipo, naturalmente que enviaremos para lá alguns desses doentes. Eles precisam de cuidados.”

O director de infecciologia considera ainda que os doentes não-Covid não foram esquecidos “de maneira nenhuma”. 

“Houve uma fase, durante a pandemia, em que os doentes fugiam do hospital. Nós continuámos a fazer as nossas consultas e a operar os doentes.”

“Houve uma fase, durante a pandemia, em que os doentes fugiam do hospital. Nós continuámos a fazer as nossas consultas e a operar os doentes. Houve alguma redução, mas pequena, de cirurgias e de consultas. Grande parte do hospital continuou a trabalhar e a ver os seus doentes. Muitas vezes, porque os meus colegas estavam quase todos na pandemia, havia muitos contactos telefónicos com as pessoas. Mas continuou a fazer-se. Não é aquilo que se diz”, garante.

Ainda há profissionais do hospital por vacinar

O processo de vacinação dos profissionais ainda não está concluído. 75% já receberam as duas doses. Faltam cerca de 1.200 profissionais que não têm contacto direto com os doentes. “Não fizemos mais porque não há vacinas, mas esperamos rapidamente poder vacinar os restantes funcionários”, diz.

À pergunta do JPN sobre se já estão a sentir uma diminuição de infeções entre os profissionais resultante da vacinação, o professor afirma: “É cedo para lhe dizer isso. Estou em crer que de facto a vacinação tem efeitos, sem dúvida nenhuma”.

A população deve estar consciente de que os profissionais estão a fazer “muito sacrifícios”. Alguns, inclusive, não só ficaram infetados como foram parar aos cuidados intensivos. 

Agora que os diversos serviços do Hospital  estão mais bem preparados, fruto da experiência adquirida, para lidar com o vírus, o maior receio de Rui Sarmento e Castro é mesmo o de ver um colega partir: “isso seria um golpe enorme em todos nós”.

Artigo editado por Filipa Silva