Os seis meses da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia acabam no final deste mês. Com o mote “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”, o foco esteve nas questões sociais e na recuperação económica pós-pandemia. O JPN falou com a ex-eurodeputada Ana Gomes e com o professor universitário Paulo Sande numa retrospetiva da quarta presidência portuguesa do Conselho Europeu.

A quarta presidência portuguesa do Conselho Europeu chega ao fim a 30 de junho, com a Eslovénia a seguir na fila. As três presidências anteriores incluíram alguns dos principais marcos da atual União Europeia, desde o Tratado de Maastricht, ao Tratado de Lisboa, passando pela primeira Cimeira UE-África.

Com a pandemia em cima das engrenagens do funcionamento da União, as circunstâncias e dificuldades eram e são outras. Apesar disso, ao longo dos seis meses de presidência portuguesa, a União Europeia testemunhou a Cimeira Social do Porto e o avanço nos Planos de Recuperação e Resiliência, entre outros.

Para António Costa, a recente aprovação do Plano de Recuperação e Resiliência português, em concreto, constitui uma forma de cumprir com o lema que tem guiado a atual presidência do Conselho Europeu: “Tempo de agir”. Ainda a 1 de janeiro, quando Portugal assumiu a presidência, o primeiro-ministro declarou o seu empenho “no sucesso da vacinação e da recuperação económica e social na Europa”.

O programa da presidência lusa define três grandes prioridades: recuperação económica sustentável, reforço da autonomia estratégica da Europa e concretização de direitos sociais. Assim, na agenda incluíram-se várias questões como o Orçamento 2021-2027, o Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais e as relações com Índia e África.

“Missão cumprida”

No entanto, surge a questão de se a presidência portuguesa foi capaz de cumprir com as expectativas. O professor universitário do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Paulo Sande é categórico, afirmando que “pode-se dizer que é missão cumprida da parte da presidência portuguesa”. Ao JPN, o docente faz um balanço positivo da presidência portuguesa, embora não tenha havido “nada de excecional, de extraordinário”.

A antiga eurodeputada Ana Gomes partilha da mesma opinião, descrevendo a presidência portuguesa como “capaz, eficaz, conhecedora dos assuntos”. Contudo, confessa, ao JPN, que em termos do “que foi concretizado politicamente”, é de outra opinião, dando um balanço “mais mitigado”.

Quer Ana Gomes, quer Paulo Sande destacam a capacidade da diplomacia portuguesa. Paulo Sande admite que Portugal “tem fama de ser um bom negociador, tem uma boa diplomacia, gere bem os dossiês”, fundamental para o trabalho desenvolvido nestes seis meses.

Contudo, nenhum dos entrevistados conta com ilusões relativas a qualquer presidência do Conselho Europeu. De acordo com o antigo candidato do Aliança às Europeias de 2019, Paulo Sande, estas “são muitas curtas” e não é de esperar que possam “mudar o que quer que seja”. Já a antiga candidata presidencial Ana Gomes considera que “o que realmente faz andar a União Europeia não são as presidências semestrais”, mas sim “uma Comissão Europeia forte”.

Os destaques

Há um consenso de que Portugal conseguiu alguns feitos. Porém, o foco vai para questões distintas. Ana Gomes é da opinião que a principal vitória destes seis meses foi o acordo Country By Country Reporting (CBCR).

Acordado a 1 de junho, este obriga multinacionais ou outras companhias com mais de 750 milhões de receitas em cada um dos últimos dois anos a revelar os seus impostos nos Estados-Membros da União Europeia. Para Ana Gomes, o acordo representa “um passo realmente decisivo” para que as questões de fiscalidade assumam uma maior preponderância.

Na opinião de Paulo Sande, a principal conquista está na “gestão do Plano de Recuperação e Resiliência, sobretudo a pressão que foi colocada sobre o seu acelerar”. Este surge da concretização de um mecanismo de emissão de dívidas inédito, o Next Generation EU, que atingirá os 750 mil milhões de euros. O docente da Católica de Lisboa destaca esse feito: “É durante a presidência portuguesa que a Comissão Europeia emite a sua primeira emissão (…) de obrigações para financiar um plano europeu”.

Uma outra questão que marcou a presidência portuguesa foi a Cimeira Social do Porto. Ambos os entrevistados são da opinião que esta correu bem e cumpriu com as expectativas. Paulo Sande afirma que esta “foi importante pelos sinais que enviou”. De acordo com Ana Gomes, houve a “ambição certa”, mas “os resultados não são extraordinariamente significativos”.

A Cimeira Social ocorreu nos dias 7 e 8 de maio, na cidade do Porto. Com foco nas questões sociais, os líderes europeus procuraram a implementação do Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Este plano abrange diversas metas no que toca a direitos sociais “muito vastos”, diz Paulo Sande,  como uma taxa de emprego superior a 78%, formação anual para 60% dos adultos e menos 15 milhões de pessoas em risco de pobreza.

Embora o professor universitário considere haver “uma ambição grande” no plano, Ana Gomes tem outra opinião, confessando desejar “muito mais ambição”. Assim, apesar de considerar “um bom plano”, destaca falhas, como a ausência de um salário mínimo europeu e mais ações no que toca às questões fiscais, para além do já referido CBCR. 

Nessas questões, assinala uma proposta do atual presidente americano, Joe Biden, de um IRC global de 21%.  A antiga eurodeputada defende que a Europa deve ser mais ambiciosa e apoiar um IRC de 25%. Como a própria aponta, e confirma o Observatório Fiscal, essa política permitiria a Portugal arrecadar 600 milhões de euros em impostos.

Noutro plano, o docente Paulo Sande acredita que o “processo de vacinação na Europa acabou por ser muito mais útil e muito mais importante” do que inicialmente se pensava. Para o mesmo, não há dúvidas de que a situação seria mais complicada se não tivesse havido esse esforço conjunto. Outro ponto referido é a Conferência sobre o Futuro da Europa, que começou em maio. Ana Gomes não tem “grandes expectativas” para esta, mas destaca a necessidade de se abandonar a questão da unanimidade na UE, a qual “implica tantas paralisias“.

Aquém do desejável

É precisamente nessa questão da vacinação, contudo, que Ana Gomes apresenta algumas das críticas mais contundentes ao governo português. Embora reconheça a rapidez na aquisição de vacinas, considera que Portugal esteve mal em não insistir naquilo que foi recomendado por figuras como o Secretário-Geral da ONU: o levantamento das “patentes das vacinas para permitir a multiplicação da produção”. “A presidência portuguesa podia ter feito a diferença”, afirma. 

Relativamente à questão do Estado de Direito dentro da União Europeia, a antiga eurodeputada lamenta não ter havido um maior empenho por parte da presidência portuguesa em “levar a tribunal Estados que obviamente têm feito pouco do Estado de Direito”. A eurodeputada destaca a Hungria e a Polónia, que têm sido acusadas de violações constantes ao nível dos direitos humanos e da separação de poderes. A partir deste ano, entrou em efeito uma regra de condicionalidade aplicada à questão do Estado de Direito, possibilitando a privação de fundos europeus aos Estados-Membros prevaricadores.

Na perspetiva de Paulo Sande, é evidente a falta de atenção dada à questão “das migrações, a pressão nas fronteiras”. Para o docente universitário, essa é uma problemática que está “por resolver”, criticando um acordo passado com a Turquia para conter a entrada de refugiados no continente europeu. “Não há avanços”, considera.

Assinala ainda a criminalidade organizada, uma área onde “se tem que fazer muitos progressos”. Já Ana Gomes refere a nomeação do Procurador português para a União Europeia, que afirma ter sido feita de “forma desastrada”. A ex-eurodeputada considera que Portugal devia “estar numa posição de total apoio à independência e à transparência do Procurador”.

A Europa no Mundo

Dentro das relações multilaterais da União Europeia, o destaque da atual presidência portuguesa do Conselho Europeu foi para o continente africano e para a Índia. Objetivo concretizado através da Cimeira UE-Índia, realizada online, e pela concretização de uma Nova Estratégia UE-África.

Relativamente a África, Paulo Sande considera que “não há nenhuma alteração substancial“, assinalando que se vive mais “uma sucessão de momentos proclamatórios do que outra coisa”. Assim, apesar de classificar como “positivo” o percurso realizado entre União Europeia e África, não acredita que a situação no terreno está a melhorar, por “razões que não são exclusivamente ligadas” às relações UE-África.

Para o docente, a Europa tem de ser “capaz de assumir a sua responsabilidade num continente que é seu vizinho”, afirmando que “é do seu interesse que África recupere”. Na opinião de Ana Gomes, a relação com África é da maior importância, pois “não estamos isolados do continente africano”. Critica, por isso, a ausência de uma Cimeira UE-África, como aconteceu em presidências anteriores.

Uma Cimeira dessas permitiria um “nível de comprometimento” mais elevado, vinculando os chefes de Estado e de governo “àquilo que fosse acordado”. No que diz respeito à Índia, mais uma vez, assinala “a ambição certa“, mas considera que “as condições” pandémicas “não permitiram ir mais longe”.

Paulo Sande afirma que a Cimeira com a Índia “abriu caminhos“, mas aponta que “o que se desenvolve a seguir é que é importante”. Para o professor da Católica, constitui uma oportunidade para “abrir um mercado que é um mercado importante”. “A Índia é um país absolutamente essencial para a Europa”, considera.

Depois de Portugal

A presidência portuguesa do Conselho Europeu insere-se dentro de um trio de países, dos quais fazem parte a Alemanha e a Eslovénia. A portuguesa seguiu-se à presidência alemã e é sucedida pela eslovena. De assinalar que o atual governo esloveno é políticamente diferente do português, sendo conhecido pela sua proximidade a regimes como o húngaro e o polaco.

A Eslovénia foi um dos países céticos do regime de condicionalidade aplicado à questão do Estado de Direito. Paulo Sande espera que o país consiga dar “uma boa resposta” relativamente a essa questão, mas também ao “bom funcionamento de Schengen“, afetado pela pandemia.

A problemática do Estado de Direito é mesmo uma das quatro prioridades definidas pelo governo esloveno, sendo as outras a recuperação, a Conferência sobre o Futuro da Europa e a segurança. Os próximos meses ficarão marcados pelo lema “Juntos. Resiliência. Europa”. Contudo, as expectativas de Ana Gomes são baixas, acreditando “que consigam [os eslovenos] algum desenvolvimento”, mas nada de muito significativo. Para a mesma, falta “direção política ambiciosa à União Europeia”.

Paulo Sande vai mais fundo e aponta críticas ao próprio sistema. Para o docente universitário, o atual sistema de presidência do Conselho Europeu “faz muito pouco sentido“. Ana Gomes discorda e considera “salutar que haja esta rotatividade todos os seis meses“, o que faz com que os Estados tentem “fazer a diferença numa ou noutra área que é para eles mais sensível”.

Mais uma presidência do Conselho Europeu aproxima-se do fim, com expectativas cumpridas e alguns resultados. Apesar de serem apontadas algumas críticas e falhas, o balanço geral é, assim, positivo. Agora, as expectativas movem-se para a Eslovénia.

Artigo editado por João Malheiro