Rufane Tomás, Rita Costa, José Nogueira e Mauro Lopes fizeram da moda a sua profissão. Os manequins levaram o JPN aos bastidores do mundo da moda, revelando toda a preparação física, alimentar e mental necessária para garantir uma boa prestação. Entre 'fittings' e desfiles, há muito a discutir sobre a precariedade do meio, a diversidade (ou falta dela) e a pressão que este trabalho acarreta.

O trabalho de modelo começa muito antes da hora do desfile e não é tudo tão fácil como parece. Para lá do olhar fixo, dos passos certeiros e do fugaz momento do espetáculo, há cuidados na alimentação e medidas a ter em conta. Os modelos que fazem as fashion weeks mundiais vivem na sombra dos ideais do mundo da moda e movem-se num meio onde a diversidade ainda é escassa.

O JPN conversou com quatro modelos que desfilaram em várias edições do Portugal Fashion, que teve nova edição a decorrer este mês, sobre os preparativos para uma semana da moda e a vida por trás da passerelle, o ‘show’ da realidade.

A indústria em Portugal: um ciclo precário “difícil de quebrar”

Apesar de ter faltado em algumas edições, Rita Costa participa há oito anos nas semanas da moda, tendo já desfilado nos palcos de Milão, Paris e Malásia. A modelo de 23 anos conta que o seu primeiro desfile foi o de Ricardo Preto, na Moda Lisboa, e confessa que “na altura estava extremamente nervosa”.

Nos bastidores da semana da moda portuguesa, Rita afirma que o nervosismo está sempre lá: “há coordenados e sapatos bastante complicados que parece que estão a prenunciar uma desgraça”.

Ao longo dos anos, os modelos passam por várias adversidades na profissão, que acabam por ser “desmotivantes”. Rita Costa aponta a dificuldade em arranjar trabalho na área da moda nacional como um dos principais pontos. “Normalmente, para se trabalhar bem em Portugal é preciso fazer algumas coisas lá fora, mas para trabalhar lá fora é preciso já ter portfólio no país de origem. No início, é um ciclo um bocado difícil de quebrar”, diz.

Para José Nogueira, natural de Barcelos, era difícil dirigir-se ao Porto e a Lisboa, devido ao custo que a deslocação representava para as agências. Atualmente com 22 anos – iniciou a carreira aos 16 -, terminou a faculdade em setembro e decidiu explorar a moda internacional. Desfilou cerca de dez vezes no Portugal Fashion e na Moda Lisboa. Por enquanto, internacionalmente, só participou na fashion week de Milão.

O modelo descreve a profissão como um conjunto de altos e baixos. “Sentes-te super bem, motivado para a semana toda, mas depois também tens semanas em que é quase deprimente, não recebes mensagens de castings, nem nada. Estás uma semana a viver sem saber o que vais fazer amanhã”, conta. Rita Costa acredita que arranjar trabalhos depende “muito da sorte, do timing, da ocasião”.

Quem está de fora, ouve múltiplas vezes falar da competição entre modelos femininas. Para Rufane Tomás, o objetivo é ser melhor que os restantes manequins, mas sem os prejudicar. A modelo, de 24 anos, começou a marcar presença nas fashion weeks em 2014, ainda com 17 anos. Até ao momento, já desfilou em Milão e em Nova Iorque.

A modelo conta que nos primeiros desfiles “ficava muito nervosa”, mas agora já os encara com mais normalidade. Desde o início, a competição não é de todo o seu objetivo; uma opinião partilhada por Rita Costa, que considera o desejo de “quererem estar num lugar de destaque” como algo normal, como um desejo de ter o “seu momento” sob os holofotes da fama.

“Competitividade propriamente dita posso dizer que não é, de todo, a minha experiência. As [experiências] que tenho tido são de genuína empatia, de felicidade uns pelos outros, de apoio, mesmo”, acrescenta.

“Já vi raparigas a desmaiarem no backstage por se terem alimentado mal”. Os impactos do meio na saúde mental e física dos modelos

Com ou sem competitividade como foco, os moldes da profissão exigem que haja um cuidado acrescido nas rotinas diárias, principalmente quando se aproximam as grandes semanas da moda em que participam. Cerca de um mês antes de uma fashion week, os manequins devem “começar a fazer um bom trabalho ao nível alimentar, fazer atividade física e ter alguns cuidados de beleza”, refere ao JPN o modelo Mauro Lopes.

O modelo atirou-se para a moda como “um salto de paraquedas” em 2009, ano em que desfilou pela primeira vez na Moda Lisboa. Trabalhou para os designers Miguel Vieira e Nuno Gama, sem ter conhecimento aprofundado sobre o universo em que estava a entrar. 

Mauro abandonou as passerelles em 2017, mas continua a fazer trabalhos como modelo fotográfico. Admite que a ignorância de “não saber bem o que era a Moda Lisboa e os estilistas para quem estava a desfilar”  fez naturalmente com que “não ficasse nervoso nos primeiros desfiles”. Ainda assim, não deixava de ter cuidados altos com vários dos aspetos do seu corpo para que, na hora certa, estivesse com a imagem que era pretendida. “Eu falo por mim, tinha ainda mais cuidado com a pele do que no resto do ano”, exemplifica.

Já a preparação mental é algo que não se vê, mas que está em constante processo. Rita Costa diz que, na sua visão, a vertente psicológica está ligada à autoconfiança do modelo, que deve ser um trabalho pessoal em “evolução constante”. “É fundamental para mim sentir-me confortável comigo própria para sentir que, de facto, vou estar a fazer um bom trabalho e não me deixar afetar por alguma coisa exterior que se possa passar”, afirma.

Rufane Tomás no Portugal Fashion. Foto: Sara Arnaud

Numa semana da moda, a alimentação acaba por ser outro fator crucial. Para os quatro modelos, a refeição deve ser cuidada, mas “sem exageros”. Rufane Tomás esclarece que a sua agência não interfere naquilo que come. “Conheço-me, tenho consciência e sei o que posso e não posso comer. Caso faça algo que me prejudique, depois tenho de lidar com as consequências”, diz. 

Já Rita considera que, durante a semana da moda, “açúcares” são imprescindíveis para conseguir aguentar a exigência física e mental dos dias, “que parecem não ter fim”. Tenta comer o melhor possível dentro do que tiver disponível no catering do evento, consciente de que deve evitar hidratos de carbono mesmo antes dos desfiles.

“Como um bocadinho de tudo, saudável e não saudável”, afirma por sua vez José Nogueira, salientando que, mesmo conhecendo o seu corpo “há sempre uma ‘vozinha'” na cabeça que diz: “devias fazer mais” para manter a imagem. 

Mauro Lopes conta que, na sua experiência profissional, já viu modelos que não queriam comer “para estar bem para o desfile”.

Já vi raparigas a desmaiarem no backstage por se terem alimentado mal, com medo de ganharem uma medida a mais. Muitas vezes, não comiam ou só comiam umas folhas de alface”, relata. O modelo acredita que é importante que nas fashion weeks exista acompanhamento nutricional dos modelos, para não deixar que situações como a que exemplifica continuem a acontecer. 

A pressão não é igual para todos

Apesar de não sentirem pressão por parte das suas agências e dos que as rodeiam, Rufane e Rita acham-se “na obrigação” de estar dentro de determinados parâmetros. As exigências para manter uma certa imagem corporal são “uma constante” no mundo da moda. “Atualmente, sinto uma pressão em querer emagrecer um pouquinho, mas por mim mesma”, diz Rufane. 

Entre homens e mulheres, prevalece a opinião de que, para elas, as medidas são mais exigentes. Os modelos referem que o tipo de pressão sentida enquanto mulher é diferente da de um modelo masculino.

“São pressões diferentes: uma mulher que trabalha na moda acima de tudo tem que se manter ‘magra’ e em forma”, vinca Rita. Numa ótica masculina, Mauro acredita que “para o homem, basta ter um corpo atlético, desde que caiba nas medidas que eles querem”, explica. 

A rejeição em certos trabalhos desmotiva os manequins e influencia a perceção que têm do próprio corpo. A moda acaba por “sobrecarregar” os modelos com preceitos como o “ideal de um corpo perfeito”, que é “inatingível”. Rufane Tomás e Rita Costa mencionam que fazer um bom casting e não passar acaba sempre por “desentusiasmar” as manequins, principalmente se for para uma grande marca. 

Mauro diz já ter presenciado histórias de modelos femininas que foram rejeitadas e acabaram por entrar em depressão. “Já conheci uma rapariga que pensou em suicídio, porque o desejo dela era ser modelo de alto nível cá em Portugal, mas chegou aos 18 anos e perdeu as medidas. Noutros casos, começam a deixar de comer e têm que ter acompanhamento”, conta.

José Nogueira esteve presente na última semana da moda masculina de Milão, onde perguntou a um diretor se faria parte de um desfile “que serve para mostrar os modelos aos designers e aos diretores de casting”. De forma direta, recebeu uma resposta negativa. “Disseram-me: ‘estão a pedir modelos super magrinhos e tu não estás nessa categoria’”, relembrou a resposta que lhe foi dada. “É um ‘não’ que dói”, mas diz que compreende. Garante ainda que dá tempo a si próprio para processar e encara que “amanhã é outro dia”.

Numa nota positiva, todos os modelos relembram a semana da moda como “um ponto de encontro”. É no backstage que se reúnem e põem “a conversa em dia” depois de meses sem se verem. Rita Costa confessa que o que mais gosta “é o sentido de comunidade e humildade”. Para José, este ambiente convida à autodescoberta. “Lidas com pessoas diferentes, de raízes diferentes, culturas diferentes, o que, de certa forma, vai ajudar-te a conheceres-te a ti mesmo”, diz.

Para além do convívio, as fashion weeks ficam marcadas pela adrenalina do espetáculo, que é o culminar de toda a preparação feita até ali. Mauro descreve o processo: “vamos experimentar a roupa. Coube? Não coube? Vamos fazer alterações. Chegamos ao desfile, alinhamos e percebemos qual é a ideia do estilista”. Finalmente, o desfile, que dura apenas alguns segundos – “é entrar na passerelle, esquecer tudo e ir”.

Todos diferentes, mas todos iguais. Falta diversidade no mundo da moda?

É difícil definir o termo “diversidade” no mundo da moda. No dicionário, a palavra apela à variedade, à multiplicidade de algo. Contudo, quando tentamos decifrar o dicionário de uma fashion week, a palavra é mais difícil de localizar. A multiplicidade facilmente se torna numa repetição de corpos que se medem pela mesma fita. 

Os modelos acreditam que a conceção de um “corpo idílico”, que encaixa em padrões definidos, continuará a preencher as passerelles à volta do mundo. Foto: Sara Arnaud

Rufane Tomás admite que ser modelo de haute couture – de alta costura – exige outro tipo de responsabilidades. “Normalmente, quando a mulher está acima do peso, não vai para a fashion week”, admite. Estar acima do peso significa, segundo a modelo, não ter as medidas certas. “Tem de ter de ancas até 90, 91 centímetros, não podes ter 93. Já és considerada ‘gorda’”, explicou. 

Contudo, alguns modelos já conseguem ver ligeiras mudanças no panorama da moda. Mauro Lopes deixou a carreira há algum tempo, mas admite que “comparado com o que era há dez ou quinze anos, as coisas mudaram bastante”. Há mercados que começam a “alterar esta visão” e a incluir modelos “plus size”

Quando falamos de “uma modelo comercial, da parte de e-commerce ou publicidade, já é mais diversificado”, admite Rufane. A mudança parece estar presente “apenas nas marcas mais acessíveis ao público em geral”, talvez até por um impulso por parte de influencers. Muitas marcas começam-se a associar a criadores de conteúdo, o que “também ajuda na diversificação”, diz José Nogueira.

“Já se começa a ver cada vez mais modelos com corpos diferentes, quer sejam mais baixas, quer sejam maiores”, admite a modelo Rita Costa. No entanto, afirma que em Portugal esta ainda não é uma realidade que se possa medir. “Acho que eventualmente precisamos de evoluir para aí”, manifesta. 

Num futuro próximo, estes quatro modelos não têm crença numa transformação significativa. Acreditam que a conceção de um “corpo idílico”, que encaixa em padrões definidos, continuará a preencher as passerelles à volta do mundo. 

Artigo editado por Tiago Serra Cunha e Filipa Silva