A vida dolorosa dos antigos mineiros e britadeiras das minas de São Pedro da Cova é retratada, na primeira pessoa, numa peça que estreia esta quarta-feira (15), no Teatro Carlos Alberto, no Porto. O JPN falou com uma antiga britadeira e com o co-encenador da peça, que vai ter um segundo capítulo.

Peça vai estar em cena até domingo, dia 19 de junho. Foto: João Tuna/TNSJ

“A Mina” é uma peça de teatro documental dirigida por André Amálio e Tereza Havlíčková, que conta a história de São Pedro da Cova, das suas gentes e de um crime ambiental que se estende até aos dias de hoje.

A peça junta em palco diferentes gerações, entre os 18 e os 87 anos, que se unem para recordar e ilustrar o passado e o presente da vila. Nesta viagem, os espectadores são presenteados por testemunhos reais dos habitantes – são eles que formam o elenco da peça -, que dão a conhecer a dor, luta, sacrifícios e as histórias de amor escritas a carvão nas minas de São Pedro da Cova.

As minas encerraram no final da década de 60, mas a fuligem e as memórias ainda vivem com os habitantes da pequena vila gondomarense. Para além de todos os impactos, danos físicos e psicológicos, a população vê-se assombrada com a existência de resíduos tóxicos nos seus solos.

O “pára-arranca” da retirada dos resíduos, o acumular das experiências traumáticas e de maus-tratos aos trabalhadores foram os principais fatores que impulsionaram o elenco a participar no projeto. O texto que levam ao palco é marcado pela honra, pelo orgulho e pela nostalgia de uma gente trabalhadora, que não esconde a raiva e o trauma nas suas vozes.

“Eu não sinto dificuldades, porque eu tenho cara para tudo”, exclama Florinda Santos Sousa, de 79 anos, uma das habitante da vila que sobe ao palco com o peito cheio de angústia. Ao JPN, à margem do ensaio de imprensa da peça, a antiga britadeira vê este espetáculo como um regresso ao passado que a permite “desabafar” o que lhe vai na alma.

Em palco, Florinda relata a sua vida e expressa a necessidade de expô-la para dar a conhecer aos espectadores não só a realidade cruel das britadeiras, como de todos os escravos do martelo e do carvão. Choca a audiência com os seus relatos duros e revoltados, dos quais se destaca o episódio da perda de um bebé. A culpa atribui-a ao médico contratado para auxiliar os trabalhadores da mina.

No palco, tudo remete para a exploração do carvão: as picaretas, os capacetes, a ténue luz e os sons metálicos que se fazem ouvir. É uma experiência imersiva e claustrofóbica, que recorre à utilização de gravações de época e da projeção das entrevistas aos membros do elenco, para sublinhar o real retratado e para nos aproximar do estilo de um verdadeiro documentário. 

Um encenador que se junta à voz de revolta

A unidade do povo de São Pedro da Cova fascinou André Amálio, um dos encenadores d’A Mina que também se junta ao elenco, atuando como uma espécie de repórter. “As pessoas de São Pedro da Cova têm vontade e necessidade de falar sobre isto. Têm que deitar cá para fora”, diz o encenador, admirando o facto de existir um público que está disposto a conhecer estas histórias.

André Amálio revela que esta peça não é uma mera exposição de factos, nem pode ser reduzida a uma crítica, é “um espetáculo que tem várias camadas e é um bocado difícil delimitar a uma coisa única”. A dimensão da história é enfatizada através da sua faceta multigeracional, da utilização de um elenco vasto, diversificado e sem experiência. O passado mineiro já vai longe, contudo, “há também uma segunda ou terceira geração para quem isto é importante e valioso”. Pessoas mais jovens que olham para o passado e refletem sobre o mesmo, disse o encenador em declarações ao JPN.

O dramaturgo confessa ter conhecido esta história por pura coincidência, mas devido à amabilidade e disponibilidade da população local sentiu a necessidade de trazer este tema para a ribalta. O dinheiro proveniente da atividade mineira “matou a fome a muita gente”, no entanto, a população foi alvo de uma “escravidão sem limites”. A curiosidade do encenador acerca do depósito de resíduos tóxicos e a frustração da povoação que vê a sua saúde ameaçada foram o gatilho necessário para a realização deste projeto.

No mês passado, arrancou o que deverá ser a última fase de limpeza dos resíduos tóxicos que foram depositados em São Pedro da Cova pela Siderurgia Nacional entre 2001 e 2002. Apesar de o processo se arrastar desde 2014, o diretor artístico mostra-se esperançoso e julga que este é o “ponto de viragem”.

De volta à peça, o espetáculo tem a duração de 1h30 e conta com a participação do coro da Escola Secundária de São Pedro da Cova, que através das suas harmonias abafa o ruído sombrio das minas, dos seus engenhos e elevam os pesares dos escravos das suas paredes. “A Mina” está dividida em três grandes partes, num total de 14 cenas, que envolvem períodos distintos: o passado mineiro; o centro revolucionário de São Pedro da Cova e o depósito de resíduos.

Quanto às expectativas sobre o desempenho da peça, Florinda Santos Sousa mostra-se confiante e ansiosa para “começar a trabalhar” no próximo projeto. Isto porque, “A Mina” faz parte de um percurso de dois espetáculos. “Tribunal Minas” é a próxima aposta de André Amálio e representará um julgamento fictício, baseado no processo jurídico real originado pela deposição dos resíduos tóxicos. O processo arrastou-se por mais de dez anos e acabou por ser dado como prescrito em fevereiro último pelo Tribunal da Relação do Porto.

A peça produzida pela Companhia de Teatro Hotel Europa estará em exibição a partir desta quarta-feira (15), às 19h00 e permanecerá em palco até domingo, 19 de junho, no Teatro Carlos Alberto. Os bilhetes podem ser adquiridos nos locais habituais pelo valor de 5 euros.

Artigo editado por Filipa Silva