São 7h30 de sexta-feira e o cais da Lota de Matosinhos está vazio. Só se ouvem as gaivotas. O nevoeiro que esconde a linha do horizonte é presságio para um mau dia de pesca. O São João aproxima-se, mas hoje os ânimos estão pesados: os barcos vêm leves e não trazem sardinha. 

O primeiro a chegar é o Camacinhos e a bordo está Joaquim Costa. O desânimo e as mãos vazias confirmam que a pesca foi má. “Este ano está a correr bem, hoje é que correu mal”, afirma o pescador de Matosinhos. Joaquim reconhece que “há dias que se apanha, outros dias que não se apanha. Depende da sorte”.

Aos poucos, mais embarcações começam a atracar. O Pacífico Norte vem em contracorrente, ao sabor da nortada. Apesar do mau tempo, foi o barco que mais sardinha trouxe. Eduardo Granja é mestre de outra embarcação, mas já terminou o seu serviço e veio ajudar os colegas na descarga. 

Para Eduardo, “a pesca foi razoável” e a esperança é que esta semana “os preços animem” e estabilizem nos “30, 35, 40 euros o cabaz”.  A expectativa estende-se a todos os pescadores. António Bareiro, natural das Caxinas, também está a torcer para que “o preço possa subir um bocadinho”.

Os pescadores têm pescado os “130 cabazes diários” definidos, explica António. O aumento das quotas para 30 mil toneladas, até novembro, veio facilitar a gestão: “Como nos deram um bocadinho mais de quota, vamos tentar esticá-la até dezembro, para ter mais tempo de trabalho e para aguentar o pessoal a trabalhar”, explica Eduardo Granja. 

A embarcação Camacinhos.

“Gordinha” e “suculenta”

Compradores e revendedores vão chegando ao cais e juntam-se à volta do barco. Todos querem ver como está o peixe. Os cabazes de sardinha, coberta em gelo, vão saindo do barco. Cá em cima puxa-se a corda, uma e outra vez. As vozes roucas e cansadas vão dando indicações, e a boa disposição não é esquecida. 

Apesar de hoje não ser muita, “a sardinha do norte está no ponto, está pronta para as pessoas se deliciarem com ela, diz Eduardo. Enquanto se carregam as paletes com os cabazes, Delfim Melo, ajudante na Lota, afirma: “Está mais gostosa! Ontem comi 15 sardinhas ao meio-dia e 15 à noite. E já vou levar outro balde”. 

“Gordinha” e “suculenta”, é assim que Rosa Menezes e Adolfo Lapa, revendedores, descrevem a sardinha deste ano. A verdade é que os requisitos para uma boa sardinha não são muitos: só “tem de pingar no pão”. Eurico Martins, diretor da Docapesca, acrescenta que “não interessa ter uma sardinha grande e estar seca, não pinga nada”. 

O cheiro a sardinha assada e a manjerico, que já paira no ar, não engana: o São João está a chegar. Eduardo Granja acredita que as restrições impostas pela pandemia não são suficientes para esmorecer o espírito popular: “Não há São João na rua, mas há em casa”

As saudades dos arraiais já apertam. Ana Rebelgado vem à lota todos os dias comprar sardinhas para a fábrica de conservas em que trabalha e confessa que “a festividade na rua” é das coisas de que sente mais falta.

Na lota, pesa a ausência da inundação de gente que por esta altura enchia o cais. Rosa Menezes e Adolfo Lapa explicam que noutros tempos vendiam entre “ vinte a trinta paletes”. Agora, “vende-se muito a particulares” e o mais provável é venderem apenas uma dúzia. 

Rosa Menezes e Adolfo Lapa.

Um trabalho de gerações

Na empilhadora já vão os últimos cabazes para o leilão. Para os homens do Pacífico Norte, o trabalho está quase feito. Agora, falta preparar o barco para o dia seguinte. Uma rotina que a maioria já segue há muitos anos. 

Eduardo Granja, mestre da embarcação Samuel, não foge à regra e tem a pesca no sangue. “Venho de gerações de pescadores: o meu bisavô era pescador, o meu pai era, eu sou, o meu filho é”, conta Eduardo.

Já lá vão 30 anos de mar. As marés, tal como o tempo, vão passando, mas há costumes que não mudam. “Saio de casa às dez da noite, vamos para bordo e passado uma hora saímos para ir procurar os cardumes de sardinha”, relata Eduardo. Se encontrarem o peixe perto da costa, estão cedo em terra: “5h30/6h já está o peixe aqui, às vezes, mais cedo até”, explica o mestre. 

Quando chegam ao cais, os pescadores vêm já preparados com cabazes e tudo o que é necessário para a descarga da sardinha. “Fazemos a descarga e preparamos a embarcação para outro dia de faina”, descreve Eduardo. 

O mestre Eduardo Granja.

“Um amor a esta arte”

Do outro lado do portão, é onde “a loucura” começa, revela Adolfo Lapa. Os compradores – para restaurantes, fábricas de conserva ou para revenda – têm agora a missão de encontrar a melhor sardinha, ao melhor preço. Hoje, como há menos sardinha, o preço subiu e o descontentamento é notório. A chegada do São João faz prever que subam ainda mais. “Estão a vender a 100 euros ali. Para a semana é para aí 150 ou 200!”, salienta André Ferreira, comerciante de 50 anos. 

Para o final, resta a sardinha “do fundo do barco”, como dizem os compradores que ainda cá andam. Elsa Batista, de 42 anos, afirma, entre risos, que o peixe “não fez a depilação, é sardinha sem escama”. Ouvem-se ainda as vozes dos comerciantes que vão murmurando que já estão aqui “por estar”. “Estou aqui desde as cinco e vou vazio”, destaca André Ferreira.

André é natural de Espinho e apesar de agora estar no negócio das vendas, sabe bem como é a vida de pescador, um trabalho que abandonou assim que pôde. André teve um naufrágio, no qual morreram três pescadores – um episódio que nunca mais apagou da memória: “29 de abril de 1994, nunca mais me esquece, era uma multidão de gritos”

Um testemunho que confirma o que Eduardo Granja, mestre da embarcação Samuel, momentos antes havia expressado: “Para ser pescador tem que haver um amor a esta arte”. “Estar aqui todos os dias, levar com o som das gaivotas e algumas cagadas também (risos)… Tem dias bons e tem dias que nem ao menino Jesus”, remata Eduardo.

Para o mestre, quem quer viver do mar tem duas opções: ou “se habitua ou tem de embarcar para outro sítio”.

Artigo editado por Filipa Silva