As primeiras 79 câmaras do sistema de videovigilância do Porto estão a funcionar desde 22 de junho e mais se vão juntar. As autoridades asseguram que o som só será usado em situações de emergência, mas a Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais considera que falta clareza sobre as situações em que pode ser usado.

Os locais onde estão instaladas as câmara estão sinalizados. Foto: Filipa Silva

O recurso aos microfones incorporados nas câmaras de vigilância instaladas, desde 22 de junho, nas ruas do Porto pode constituir uma “intrusão grave” na privacidade dos cidadãos. A opinião é de Ricardo Lafuente, vice-presidente da Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, entidade que vê com “preocupação” a instalação destes equipamentos no contexto citadino.

Na apresentação do sistema referiu-se que o som só será ativado em situações de emergência, mas falta clareza, na visão da Associação D3, sobre o que se pode considerar uma “situação de emergência”. 

No parecer de 2022 que emitiu sobre o sistema de videovigilância do Porto, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) refere-se ao tema. De acordo com a CNPD, o pedido da PSP deixa claro que “as câmaras que serão instaladas apenas gravarão imagens, não cabendo qualquer captação/gravação de som neste sistema”. Contudo, o subsequente despacho do Ministério da Administração Interna que autoriza a instalação das câmaras abriu a porta ao uso, dizendo que “é proibida a captação de sons, exceto quando ocorra perigo concreto para a segurança de pessoas, animais e bens”. Na visão da D3, faltam exemplos concretos do que tal pode significar.

Com que fundamento foi solicitada a videovigilância no Porto?

De acordo com o despacho do Ministério da Administração Interna que autoriza o sistema do Porto, a PSP requereu-o tendo em vista “a proteção da segurança das pessoas, animais e bens, em locais públicos ou de acesso público, e a prevenção da prática de crimes, em locais em que exista razoável risco da sua ocorrência.”

No parecer que emitiu sobre o pedido, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) refere que a PSP justificou também o pedido de instalação deste sistema nesta localização com “o índice de criminalidade nessa zona”,, não obstante, nota a CNPD, “os elementos apresentados revelem a sua diminuição no período considerado”.

Que condições tem de observar o sistema?

De acordo com o despacho do MAI, as seguintes:

a) Ser operado de forma a garantir a efetiva salvaguarda da privacidade e segurança, dando integral cumprimento às disposições legais aplicáveis;
b) O chefe da área operacional do Comando Metropolitano do Porto da PSP é o responsável pela conservação e tratamento dos dados;
c) O sistema de videovigilância funcionará ininterruptamente, vinte e quatro horas por dia, em todos os dias da semana;
d) É proibida a captação de sons, exceto quando ocorra perigo concreto para a segurança de pessoas, animais e bens;
e) A utilização da tecnologia de analítica de vídeo está condicionada à apresentação e validação dos critérios a utilizar no sistema de gestão analítica dos dados captados, nos termos do artigo 16.º da Lei n.º 95/2021, de 29 de dezembro;
f) Devem ser garantidos os direitos de acesso e eliminação, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 95/2021, de 29 de dezembro;
g) Deverá ser efetuado o barramento dos locais privados, impedindo a visualização, designadamente, de portas, janelas e varandas;
h) Não se permite a utilização de câmaras ocultas;
i) Os procedimentos de segurança a adotar pela entidade responsável devem incluir seguranças lógicas de acesso ao sistema;
j) Todas as operações deverão ser objeto de registo;
k) Os relatórios de registo devem reportar todas as anomalias detetadas e devem ser arquivadas por um período mínimo de dois anos;
l) Em caso de recurso à subcontratação de serviços de manutenção, atualização, reparação e conservação do sistema, o respetivo contrato deverá prever o papel da PSP como responsável pelo tratamento de dados.

O que diz a PSP sobre a conservação das imagens?

Num conjunto de perguntas e respostas no seu site dedicadas ao tema da videovigilância, a Polícia de Segurança Pública (PSP) garante que “as gravações de imagem obtidas pelos sistemas de videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas, no prazo máximo de 48 horas”.

Além disso, há incerteza sobre a política de conservação das imagens (ver caixa). “Por quanto tempo serão retidas? Qual o tratamento a que serão sujeitas?”, questiona. “Nada nas declarações do presidente da Câmara do Porto e do diretor da policia nos tranqulizaram em relacão a isto”, responde.

Para o representante da Associação D3 “é fundamental que exista uma política de retenção clara e transparente“, e reforça que “é absolutamente fulcral que não possa haver qualquer género de permissão para o reconhecimento facial“. 

O sistema de videovigilância do Porto, cuja primeira fase arrancou em junho, é composto por 79 câmaras distribuídas entre o Marquês e a Ribeira. Vão funcionar 24 horas por dia, todos os dias da semana, sendo o chefe da área operacional do Comando Metropolitano da PSP do Porto o responsável pela conservação e tratamento dos dados.

Riscos de abusos de autoridade e autocensura

Com a vigilância digital entregue a agentes da polícia, podem surgir problemas de abuso de autoridade e de desrespeito por direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A título de exemplo, a D3 refere os pareceres emitidos, em 2020, pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) sobre a instalação e alargamento de sistemas de videovigilância em várias cidades do país. A CNPD alertava para os perigos de “um controlo sistemático em larga escala”, com “inegável risco” “em especial dos direitos fundamentais à proteção dos dados e ao respeito pela vida privada, bem como à liberdade de ação”, cita a D3 numa página que dedicou na altura ao tema.

Lá fora, em São Francisco, nos Estados Unidos, a polícia foi colocada em tribunal, acusada de usar indevidamente o sistema de videovigilância da cidade para identificar caras dos protestantes que estiveram nas ruas na sequência da morte de George Floyd, em 2022. Na Irlanda, um operador do sistema também acabou em tribunal por usar as câmaras para espiar uma mulher no interior do seu apartamento. 

Por outro lado, também se discute o impacto que tais sistemas podem ter numa sociedade democrática. Com a vigilância pública surge o risco de as pessoas fazerem autocensura: ou seja, modificarem os seus comportamentos para não parecerem suspeitas, mesmo que não tenham cometido nada de imoral ou ilegal, apenas motivadas pelo medo. Esta conduta denota uma perceção de redução nas liberdades e pode conduzir a um padrão de sociedade mais autoritária, uma vez que também coloca em causa o Estado de Direito, que garante a liberdade do indivíduo

Para as forças de segurança, contudo, a videovigilância é a forma mais eficaz de combate à criminalidade. Em abril deste ano, o diretor da Polícia de Segurança Pública (PSP), Magina da Silva, salientou que, sendo impossível haver um agente em cada rua, instalar câmaras é uma opção – para serem monitorizadas por um polícia. Ricardo Lafuente aponta a declaração como um “precedente delicado”- ressalva que não percebe como é que um “polícia em teletrabalho” vai conseguir desempenhar a sua função com eficácia e proteger as ruas à distância. Esta opção “empurra o problema para o lado”, diz.

De volta ao aumento da videovigilância no Porto, o vice-presidente da D3 aponta o facto de Rui Moreira ter passado parte do mandato a queixar-se da falta de efetivos na PSP. Na ausência desse reforço, diz Lafuente, há uma tentativa de usar a tecnologia para resolver problemas que deviam ser atacados, de mais de modo ativo, nas ruas. 

De acordo com a Câmara Municipal do Porto, à primeira fase segue-se uma segunda que vai passar pela aquisição de mais 117 câmaras, as quais vão ser instaladas “em várias zonas da cidade (bairro Marechal Gomes da Costa, Pasteleira, Pinheiro Torres, na zona da Foz, mas também na Asprela e em Campanhã)”, refere a autarquia. No total, o investimento é de quatro milhões de euros e Rui Moreira expressou, na apresentação da primeira fase, a vontade de que haja uma “terceira fase”. “Com certeza que virá”, afirmou o autarca. A operacionalização de todo o sistema é da responsabilidade da PSP.

Parlamento Europeu quer proibir IA na videovigilância
Preocupado com o recurso à Inteligência Artificial (IA) na vigilância dos cidadãos, o Parlamento Europeu aprovou um relatório em 2021 que desembocou, neste mês de junho, na aprovação do AI Act, considerado a primeira iniciativa regulatória de larga escala no mundo sobre a IA.
Os sistemas de identificação biométrica em tempo real, nomeadamente os de reconhecimento facial, bem como os sistemas de policiamento preditivo (baseados em perfis, localização ou cadastro) ou ainda o reconhecimento de emoções estão entre os que o PE quer ver proibidos.
A discussão passa agora para o Conselho Europeu. A expectativa é que os estados-membros possam chegar a um acordo até ao final deste ano.