No dia 20 de janeiro, o governo decretou confinamento geral devido à evolução da pandemia de Covid-19 no país. A proibição da abertura de livrarias foi uma das medidas implementadas.

Mantendo as livrarias fechadas, o Presidente da República, acabou por abrir, em fevereiro, a porta à venda de “livros e materiais escolares” em “estabelecimentos que continuem abertos”. A partir de dia 15 de fevereiro, as livrarias podem abrir se tiverem incluso no seu negócio serviços de papelaria ou venda de jornais. Se uma livraria for somente livraria, tem de encerrar. A Bertrand e a Barata, por exemplo, já começaram a vender livros in loco, por se inserirem nos critérios. Assim como lojas Fnac, Worten e até supermercados.

O JPN entrevistou Rosa Azevedo, vice-presidente da Rede de Livrarias Independentes (RELI),para perceber a realidade que o setor atravessa no momento mais duro da pandemia, em Portugal. A associação que já havia sido pensada há quase um ano, foi em março, no primeiro confinamento, que notou um crescendo da necessidade de ganhar forma. A RELI é composta por cerca de 80 livrarias de todo o país sem ligação a redes e cadeias de grandes grupos editoriais e livreiros. Assume-se com o objetivo de “coordenação de esforços” para enfrentar a crise do mercado livreiro que tem vindo a comprometer a existência das pequenas livrarias em todo o país, principalmente na atual situação pandémica.

Rosa Azevedo afirma que as livrarias que vendem exclusivamente livros se encontram em grande desigualdade perante as outras. É com espanto que encaram a decisão do governo: “não percebemos porquê é que isto aconteceu“, disse, acrescentando ainda a incompreensão de o livro não ter sido considerado um bem essencial, como aconteceu, por exemplo, em França.

Algures na rua do Rua do Carvalhido, no Porto, encontramos a In-Libris, uma livraria alfarrabista e oficina. Paulo Gaspar Ferreira nasceu e cresceu alfarrabista, herdou a profissão do pai. Passados tantos anos em atividade, é a primeira vez que a sua realidade é atravessada por uma pandemia.

A In-Libris foi a primeira livraria alfarrabista em Portugal a ganhar vida no online e, hoje em dia, está a colher os frutos dessa passagem. Com o confinamento, as vendas online aumentaram: “os nossos clientes foram para casa, sem nada para fazer e dedicaram-se aquilo que gostam de fazer na vida, que é ler e cuidar das bibliotecas“, afirma Paulo Ferreira. Mas, apesar do bom panorama do ofício, o proprietário confessa que “há problemas muito graves nas livrarias, particularmente nas pequenas, que são as livrarias independentes e que não estão suportadas por grandes grupos financeiros“.

No coração da invicta, encontramos a livraria Térmita, instalada num espaço que outrora funcionava como armazém de madeiras, contíguo ao Café Candelabro. Nunca conheceu outra realidade se não esta, com 4 meses de existência, não sabe o que é trabalhar sem a coexistência da Covid-19. De portas fechadas, é no online que fazem a totalidade do negócio funcionar. Hugo Brito, co-fundador, diz que “a partir do momento em que fechamos a porta, aumentaram as vendas online, mas essa estatística pode dever-se apenas ao facto de todas as nossas energias se canalizarem em vender online“. Aos olhos do proprietário, a medida levada a cabo pelo Governo é “discriminatória“, visto que promove uma “concorrência desleal“.

Livrarias independentes vs grandes superfícies comerciais

Com a ordem de encerramento físico, é no online que os comércios continuam a sustentar-se. Paulo Ferreira e Hugo Brito afirmam que as vendas aumentaram por este meio durante o confinamento. Paulo Ferreira diz que quando o país desconfinou, as vendas diminuíram.

O proprietário da livraria Térmita acrescenta que a partir do momento em que os supermercados puderam voltar a vender livros, as venda online diminuíram ligeiramente. “Há pessoas que ao invés de comprarem online, a partir do momento em que nos supermercados voltaram a ter livros, decidiram-se por comprar os livros no supermercado. Se reparar é complicado para as livrarias, não é? Porque elas não têm hipótese até aqui”, afirma Hugo Brito.

Mais de um mês depois, os livrarias ainda têm as portas trancadas e foram transformadas em verdadeiros armazéns de expedição. Os livreiros defendem a importância da especialização que o seu serviço oferece, em comparação com o das grandes superfícies comerciais: “Qualquer coisa que seja especializada, em principio, oferece-me um nível de serviço distinto de uma coisa que não o seja“, diz Hugo Brito.

um estatuto que tem de ser dado ao livro, mais do que à livraria. O livro pode ser considerado um bem essencial. Ele é um bem essencial, ele é um preservador da história e da memória. Sem livros nós não temos cultura. Não vale a pena. E sem cultura não há memória – Hugo Brito, co-fundador da livraria Térmita.

Paulo Ferreira considera que as grandes superfícies ainda não sabem vender livros: “Não sabem nada do assunto, eles vendem livros como se fossem chouriços, é exatamente a mesma coisa. Tratam os livros como tratam os chouriços.” O fundador da In-Libris caracteriza ainda como “concorrência profundamente desleal” a continuação da venda de livros por parte das grandes superfícies.

Os livros devem ser vendidos por livreiros, tal como as batatas devem ser vendidas por merceeiros. Neste momento, temos uma concorrência enorme e desleal por parte dos grandes grupos financeiros que detêm as grandes superfícies. Para eles isto é só mais uma gota no seu oceano e para as livrarias, neste momento, o que está a acontecer, é que as livrarias estão a fechar todos os dias – Paulo Gaspar Ferreira, dono da In-Libris. 

A RELI procura fazer valer de outras vantagens que as livrarias têm, como o registo de proximidade, experiência, a dedicação à profissão, a capacidade de aconselhamento, entre outros. Rosa Azevedo diz que “em qualquer livraria independente que nós entramos há aquela escolha que só ali se oferece“. Sobre o fator “desigualdade”, a vice-presidente da associação afirma que “a guerra dos descontos é uma guerra completamente impossível de ganhar“.

O confinamento obrigatório veio acentuar a problemática onde os grandes negócios continuam a vender e os pequenos sobrevivem. “Nós temos livrarias em risco de fechar, outras que fecharam recentemente. Sabemos que há muitas que realmente estão com  dificuldades” acrescenta.

Importância da cultura na atualidade

Será que a cultura é valorizada? Hugo Brito afirma que os governantes podem não valorizar a cultura e que “até nós próprios podemos não valorizar”, mas que existe a “verdade intrínseca desse objeto, desse estatuto mental, que é a cultura. Ela tem valor“. O co-fundador da livraria Térmia acrescenta: “ao longo do tempo, obviamente, vamos perdendo essa perceção mais acutilante que a cultura é um alicerce social importantíssimo. Mas nós somos seres construídos, além da carne e dos ossos, de cultura”, conclui Hugo Brito.

O dono da livraria In-Libris, em Vila Nova de Gaia, recorda a transformação da forma como se lê nos dias de hoje: “Antes, ler era um ato de instrução, nós hoje quando vamos ler um livro, já sabemos o que ele diz“, aponta Paulo Gaspar Ferreira.

O futuro do setor

O pensamento é coletivo: Se a atual situação se mantiver por muito mais tempo, algo negativo se aproxima. “Vão existir fechos de livrarias que não voltarão a abrir“, afirma o cofundador da livraria Térmita.

Paulo Gaspar, alfarrabista de profissão, diz que “se a situação se mantiver, vai continuar a acontecer o que já está a acontecer: vão ficar os grandes e vão acabar os pequenos“, sendo que acredita que os pequenos produtores de cultura estão a desaparecer. “Quando o país desconfinar, eles já não estão lá“, afirma.

Aos olhos do dono da In-Libris, esta realidade é dramática e que a perceção disso só vai acontecer quando sairmos de casa e virmos que as coisas desapareceram. “Os pequenos projetos, as pequenas ideias que são as que fazem andar o mundo, as ideias alternativas, já não estão lá. As ideias que não são alternativas são ideias paradas, é a coisa certa, é a coisa que já está, não há nada a fazer…não faz andar o mundo para a frente, de todo”.

Em nome da associação de livrarias independentes, Rosa Azevedo prevê que se torne cada vez mais difícil a sustentabilidade dos negócios, sendo que as despesas continuam e as dificuldades são crescentes.

Artigo editado por João Malheiro