Tudo se passou num bar na zona da Cordoaria, no Porto, em agosto do ano passado. Um grupo de amigas, todas brasileiras, relatam ter ouvido comentários machistas e xenófobos vindos de um grupo de homens sentados numa mesa ao lado. As palavras originaram um desentendimento aceso que rapidamente escalou. Das palavras passou-se à agressão: “quebraram garrafas, um cara cuspiu na cara de uma amiga, uma amiga minha levou um tapa na cara de um dos caras […] e ninguém fez nada”, recorda Sarah Spindola, uma das jovens envolvidas, em declarações ao JPN.
A estudante brasileira conta que o grupo era formado por homens portugueses que as insultaram: “Essas meninas sentadas na mesa são todas putas brasileiras”, recorda ter ouvido. Ao contestarem o comentário feito pelos jovens, iniciou-se a discussão, que terminou com garrafas no ar e as agressões físicas descritas.
Clara Cavalcanti – que como Sarah está desde 2019 em Portugal a estudar Ciências da Comunicação na Universidade do Porto [curso de que o JPN faz parte] – era outra das jovens brasileiras presente na situação. Ao nosso jornal, garante ter conhecimento de situações semelhantes passadas com outras mulheres brasileiras: “Já tinham seguido até ao banheiro, já tinham puxado o cabelo”.
A estudante relata que, na situação ocorrida na zona da Cordoaria, foram atiradas garrafas em direção a ela, tendo sido defendida por um amigo que pôs-se à frente. Ao lembrar-se da reação das pessoas que estavam ao redor mostra-se indignada: “as pessoas ficaram paradas olhando, ninguém fez nada, nem o dono do bar”. E lamenta: “se não fosse pelo meu amigo ao lado, eu estaria toda cortada”.
Com o objetivo de expor o acontecimento, enviaram o depoimento para o “Brasileiras Não Se Calam”, um projeto de apoio às mulheres brasileiras que, no estrangeiro, se sintam vitimas de assédio, discriminação e xenofobia. A proposta é publicar esses relatos nas redes sociais para dar voz às brasileiras que passaram por isso num outro país.
O perfil no Instagram, com quase de 37 mil seguidores, já publicou mais de 800 relatos de brasileiras que passaram por alguma das situações descritas. O projeto recebe relatos do mundo todo, mas a sua grande maioria são ocorrências em Portugal, o país da Europa que mais cidadãos brasileiros tem a residir. Além de dar voz a esses casos, o projeto tem por objetivo prestar apoio jurídico e psicológico gratuito às vítimas, através de advogadas e psicólogas voluntárias.
A situação vivenciada e relatada pelas duas estudantes foi publicada pela página no Instagram.
Em respostas por escrito enviadas ao JPN, as administradoras do perfil preferiram não se identificar devido às ameaças e mensagens agressivas que, garantem, a página tem recebido.
A ideia de criação do projeto surgiu após testemunharem um episódio no programa Big Brother Portugal, que as chocou. Aconteceu quando ouviram uma das participantes a afirmar: “A brasileira já tem a perna aberta”. Alarmadas com a maneira como esse estereótipo da mulher brasileira “está naturalizado”, as criadores decidiram agir. “O assédio e a discriminação sempre foi algo que nos incomodou desde que saímos do Brasil”, recordam. “Mas depois desse episódio percebemos a necessidade de fazer algo mais efetivo”.
Sem ligação particular a estes casos, mas com histórico de trabalho com casos de abuso e exploração sexual na região amazónica no Brasil, Emilly Borges considera, em entrevista ao JPN, que os tipos de assédio no Brasil e em Portugal se caracterizam de formas diferentes, mas têm a mesma base: a objetificação da mulher. Na perspetiva da psicóloga, que está a residir em Portugal desde janeiro, a fazer mestrado na área da psicologia, o peso do estigma que recai sobre mulher brasileira acaba por ser duplo: “A gente sofre o assédio ou o abuso sexual, não apenas por sermos mulheres, mas por que somos brasileiras”, descreve.
O projeto “Brasileiras Não se Calam” recebeu, entre julho e dezembro de 2020, 461 relatos de assédio ou discriminação denunciados por mulheres a residir no estrangeiro. Desses, 297 – o equivalente a 64% do total – tiveram origem em Portugal. Foram 297 brasileiras que alegam ter sido assediadas ou discriminadas em seis meses num único país. De acordo com os mesmos dados, a cidade do Porto é a segunda cidade de Portugal com maior número de relatos, ficando atrás apenas de Lisboa.
Se há mulheres que produzem estes relatos, as criadoras do projeto – que tem presença também no Facebook, Twitter e Youtube – consideram que há muitas outras que não se sentem confortáveis para denunciar os casos de discriminação vivenciados, por medo que isso possa afetar, por exemplo, o processo de autorização de de residência ou até mesmo a busca por um emprego. Muitas das vítimas acreditam que, por serem imigrantes, a denúncia não será levada adiante: “medo de serem discriminadas novamente, pelas autoridades […] e há também uma descrença no sistema jurídico e muitas mulheres acreditam que denunciar as autoridades não vai ‘dar em nada’”, escrevem as criadora do “Brasileiras não se calam”.
Neste contexto, a psicóloga Emilly Borges sublinha a importância de existirem redes de apoio para que essa vítima se sinta segura em realizar a denúncia: “Aqui ela vai ter que encontrar uma nova rede de apoio […] Será que ela tem essa rede de apoio? Será que essa rede de apoio, também, não está baseada em questões muito machistas, xenófobas?”.
Emilly Borges diz que cada pessoa vai lidar com o processo traumático do assédio de maneira singular, mas na grande maioria serão recorrentes problemas de âmbito social. De acordo com a profissional, a negação do abuso é uma maneira de a vítima lidar com o problema, evitando entrar em contacto com aquele trauma.
O problema agudiza-se se a rede de apoio da vítima “for muito machista”. Aí, “ela sabe que não vai ter o apoio, então, acaba guardando para si toda aquela questão”, conclui. Na visão da profissional, os efeitos psicológicos de casos desta natureza não podem ser desvalorizados.
Artigo editado por Filipa Silva