A primeira mesa redonda da 23.ª edição do Correntes d’Escritas arrancou a todo o gás na quarta-feira, com a sala principal do Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim, praticamente cheia. José Carlos de Vasconcelos moderou a conversa que teve como convidados Álvaro Laborinho Lúcio, Filipa Leal e Paulo Scott. Paulina Chiziane, a escritora moçambicana que venceu o Prémio Camões do ano passado, iria participar na mesa via online, mas acabou por não comparecer.
Enquanto o público entrava na sala do teatro povoense e se acomodava no lugar, uma canção soava no fundo. Este ano, em todas as mesas do encontro literário, a conversa entre os escritores tem como mote uma música. José Carlos de Vasconcelos admitiu que “esta foi uma excelente ideia da organização”.
“Finalmente, estamos novamente frente a frente e estar aqui, neste ambiente do Correntes, é um avanço e, de certa forma, alguma esperança de que isto vai continuar a melhorar e de que, daqui a dois anos, possamos estar aqui todos, nos 25 anos do evento”, celebrou José Carlos de Vasconcelos.
O moderador e escritor de 81 anos relembrou o nome da canção central daquela conversa: “Samba da Utopia”, de Jonathan Silva. A canção foi escrita para uma peça de teatro em 2018, mas foi em 2020 que se tornou viral, tendo sido alvo de várias partilhas nas redes sociais.
Sem grandes rodeios, José Carlos de Vasconcelos passou a palavra ao seu antigo colega de curso, Álvaro Laborinho Lúcio, que publicou este mês o romance “As Sombras de uma Azinheira”. O ex-ministro da Justiça, professor universitário e escritor português leu “um pequenino texto” que tinha escrito e que começava assim: “Temos a música, temos o poema, falta-nos contar uma história. Esta, por exemplo”.
O jurista partiu, então, para uma análise da letra da música, estrofe a estrofe. Em primeiro lugar, destacou os poetas Drummond de Andrade e Eugénio de Andrade que, tal como o autor do “Samba da Utopia”, escreveram “tendo como tema a palavra”. Álvaro Laborinho Lúcio referiu ainda que “poesia” foi “a primeira palavra descoberta por Jonathan Silva”.
No que toca à “sabedoria” cantada pelo compositor brasileiro, o ex-ministro retomou uma ideia do filósofo Martin Heidegger: “Se queres respostas, estuda ciência. Se queres perguntas, lê poesia”. De facto, o escritor português de 80 anos considera que é nas perguntas que reside a sabedoria.
Adaptando o pensamento de Paulo Freire para os dias de hoje, o octogenário sublinhou “a luta por uma consciência crítica da ditadura da indiferença e, ao mesmo tempo, pelo regresso ao direito à contemplação”. O professor universitário saltou, depois, para uma narrativa protagonizada pelo próprio e pela sua tia Ricarda, com 105 anos, deitada numa “cama de hospital”. Álvaro Laborinho Lúcio costumava levar bolos à tia, para quem o futuro era o dia em que o sobrinho iria voltar. “Nunca cheguei a saber se o futuro era eu ou eram os bolos. Mas ela teve futuro até morrer”, contou.
Por fim, o escritor salientou o dever de “falar contra qualquer forma de ditadura” e regressou à poesia, trazendo o poema “E Tudo era Possível”, de Ruy Belo, para o presente. A intervenção do ex-ministro mereceu a ovação do público.
O “Samba da Empatia”
Em seguida, José Carlos de Vasconcelos deu a palavra a Filipa Leal. Nascida no Porto, é escritora, poetisa, argumentista e jornalista. Com 43 anos, já publicou 11 livros, como “Vem à Quinta-feira” e “O Problema de Ser Norte”. “Comecei por vir aqui muito jovem, como repórter do Jornal ‘O Primeiro de Janeiro’, para entrevistar escritores. Um dia, pela mão de Francisco Guedes, aqui vim como escritora, acabada de lançar o meu primeiro livro de poemas, em 2004”, partilhou.
Filipa Leal iniciou a sua intervenção com os versos do poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, que a marcaram. A partir daí, a escritora abordou a dualidade da palavra máscara: a obrigatória, “a que nos protege uns dos outros”, e a metafórica, “a que nos protege de nós mesmos, a de Álvaro Campos”. A poetisa afirma ter deixado esta última em casa. “Atrevo-me numa espécie de sinceridade. É este o meu gesto de utopia”, confessou.
Para a escritora, 2020 e 2021 foram anos diferentes, em que aprendeu a usar máscaras obrigatórias e, simultaneamente, a tirar as metafóricas. Leal acredita que este ano vai também marcar pela diferença. Portanto, arriscou desde já na escrita da letra de um samba, em resposta ao “Samba da Utopia” e chamou-lhe “Samba da Empatia”. “Pegue o amor que ainda há, vá para a rua cantar a palavra: empatia” é o refrão. No fundo, a letra faz uma retrospetiva dos acontecimentos atuais na Europa e apela à empatia dos responsáveis e de todos.
A última intervenção é de Paulo Scott, professor universitário e escritor brasileiro, com dez livros publicados no Brasil. Sendo a sua segunda vez em Portugal – a primeira foi em Óbidos -, Paulo já publicou um dos seus romances na terra lusitana, o “Habitante Irreal”. O seu livro “Marron e Amarelo” estava entre os finalistas do prémio das Correntes d’Escritas. Numa outra perspetiva, o escritor de 55 anos levantou-se e veio falar de pé, na linha da frente do palco, porque “antes da escrita vem a oralidade”, justifica.
O escritor espelhou o tema da utopia na realidade que vive o seu país. Iniciou o seu discurso a falar da ética e condena o atual presidente brasileiro por ter falta dela. “Quando falo em ética é preciso apontar que este é um momento específico em que, no mundo, a extrema-direita ganhou um espaço muito grave”, afirma, acrescentando que a tecnologia impulsionou a propagação das ideias de forma rápida e intangível.
Para o escritor, a palavra é importante para combater as pessoas que querem “eliminar o outro”, eliminar as minorias. “Resgatar a importância da palavra é um aspeto essencial”, salienta.
No espaço aberto para perguntas do público aos escritores, um espectador relembra Zeca Afonso, como “um grande criador de poesia e também de utopias”. “As utopias do Zé ficaram connosco”, concluiu.
O Correntes d’ Escritas decorre até sábado (26), na Póvoa de Varzim e termina no dia 28 em Lisboa. Esta sexta-feira decorrem as mesas 5 e 6, assim como lançamentos de livros de escritores presentes no evento, como Manuel Vilas e Carla Pais.
Artigo editado por Filipa Silva