Oleksandra Hondiul, 26 anos, dava aulas de jornalismo na Universidade Borys Grinchenko, em Kiev. Agora, a educação parou e a “escola da vida começou”. É preciso lutar e a batalha contra a desinformação que vem da Rússia é uma das frentes de combate. E se o medo e a incerteza foram combustível para a ação, a juventude ucraniana é hoje o oxigénio que alimenta o fogo da esperança. Oleksandra não esperava a guerra, mas não duvida de que a Ucrânia sairá vencedora. Desde a capital, respondeu às perguntas do JPN. A partir das respostas, que editamos só para efeito de compreensão do leitor, apresentamos o seu testemunho na primeira pessoa.

“Estava em casa em Kiev. E, ao contrário de provavelmente todas as pessoas na Ucrânia, adormeci nesse dia. Porque a guerra começou às cinco da manhã e eu acordei quase às nove. Os meus pais disseram que a guerra tinha começado e comecei a ler as notícias – e não parei de o fazer desde então.

A primeira coisa que pensei foi que não podia ser. De acordo com as minhas previsões, a guerra não deveria ter começado de todo. Afinal, sou analista e estudei relações internacionais, faço análise e previsões no plano internacional. Tinha a certeza de que a guerra não iria começar, porque não é rentável para a Rússia – que receberia, pelo menos, muitas sanções e restrições. Mas estava enganada. 

A dada altura, tudo mudou, literalmente. Comecei a escrever aos meus amigos mais próximos – ‘Como estás? Onde estás?’ – e o meu pai trouxe as minhas avós para casa.

O meu pensamento seguinte foi sobre trabalho. Hoje haverá aulas na universidade? A educação parou. Afinal de contas, devido à imposição da lei marcial, todas as instituições educativas foram suspensas. E a ‘escola da vida começou’. Tenho a certeza que agora as crianças sabem exatamente como são os diferentes tipos de tanques e armas, como fazer um cocktail molotov e que sons significam que tipos de armas. E é horrível!

No primeiro dia da guerra, os estudantes estavam em pânico e não sabiam se deviam abandonar os dormitórios, para onde ir se a sua casa fosse atacada, se haveria mais aulas e tinham muitas perguntas. Os primeiros quatro dias foram cheios de medo e incerteza.

Mas depois descobri um novo lado dos estudantes. Começaram a ajudar em tudo – alguns criaram materiais criativos, outros escreveram artigos e notícias; uns voluntariaram-se, outros angariaram dinheiro para necessidades médicas e alguns foram para a guerra.

Nunca acreditei tanto na juventude da Ucrânia como acredito agora. Os jovens são incríveis. E aqueles que foram para o estrangeiro ou para regiões mais seguras estão a ajudar os migrantes ou aqueles que querem atravessar a fronteira.

Alunos de Oleksandra Hondiul da Universidade de Borys Grinchenko, em Kiev, antes da invasão russa. Foto: DR

Lembro-me de um dia (era o segundo ou o terceiro dia da guerra) em que uma estudante foi deixada sozinha num dormitório e não pôde ir a lado algum depois do recolher obrigatório e da proibição por causa de tiros e mísseis, e todos nós tentámos ajudá-la a chegar a casa dos pais. Afinal de contas, estar sozinha num momento como este é como um filme de terror.

É claro que alguns [estudantes] começaram a sofrer e a sentir-se culpados por não poderem fazer mais. É normal neste momento, embora seja muito triste que se sintam desta forma. Falei com psicólogos sobre este fenómeno. Afinal de contas, também sinto esta culpa. Há uma guerra no nosso país. As pessoas têm medo e não compreendem como se comportar em tais condições: por um lado, o modo de autopreservação é ativado; por outro, o sacrifício para o bem dos outros.

E eu gostaria de dizer que isto é normal. Mas não. Não há norma durante a guerra. Cada um vive a guerra à sua maneira. Alguns foram fazer voluntariado desde o primeiro dia, outros pegaram em armas, e outros ainda têm medo de sair de casa. Porque isto é uma guerra.

E dada a humanidade dos ucranianos e o nosso amor pelo povo e pelo país, é claro, muitos sentem-se culpados por não poderem fazer mais. Afinal de contas, alguém está a morrer na frente, e ‘tu’ estás sentado no corredor e sem fazer nada. Parte-te o coração em pedaços.

Quando estás seguro, sentes que seria mais fácil se estivesses em perigo como os outros. Parece-nos que podemos entender outra pessoa se experimentarmos a mesma coisa, e a partir disso tens um pensamento obsessivo: se alguém próximo de ti sofre, então tu tens de sofrer. Quando estás seguro, parece-te que nada do que faças é valioso o suficiente. Começas a pensar que somente no epicentro dos eventos podes ajudar as pessoas. Como é que eu posso dormir numa cama quente quando as pessoas dormem em caves? Como é que posso comer comida quente se muitas pessoas não têm acesso a comida?

Além disso, a Ucrânia passou por muito sofrimento nos últimos cem anos – duas guerras mundiais, o Holodomor, o desastre de Chernobyl, a Revolução Laranja, a Revolução da Dignidade, a Pandemia de Covid-19 e agora a Guerra na Ucrânia, que começou a Rússia contra a nossa sociedade. Existem muitas partes que compõem a nossa história, mas este estado de constantes desafios e mudanças não nos permite sentir seguros. Assim, quando te sentes seguro numa situação de crise, não sabes o que fazer. É assustador sorrir, assustador sentir-se feliz, assustador falar sobre algo que não seja guerra, assustador viver a vida.

Quando a guerra estourou, algumas pessoas começaram imediatamente a voluntariar-se, espalhando informações e fazendo qualquer coisa para ser útil, e algumas pessoas “congelaram” e não sabiam o que poderiam fazer a seguir. E todas essas são reações normais a eventos anormais. Então precisas de dar um tempo a ti mesmo para renovar os teus pensamentos e entender como podes ser útil onde estiveres.

Tanto quanto sei, algumas instituições de ensino superior na Ucrânia Ocidental permitem aulas online ou os professores podem enviar aos estudantes tarefas que só são para ser executadas se possível. Mas o contexto emocional é agora tão complexo que lecionar é uma proeza.

Falei com professores da minha universidade, e vários outros, e o primeiro comentário é a falta de clareza sobre o que vai acontecer a seguir. Porque é realmente desconhecido. Além disso, falta saber se o edifício da instituição em que cada um leciona irá sobreviver.

Chorei muito quando vi os edifícios das escolas e universidades bombardeados. Dói muito. Afinal de contas, a educação é um acordo entre a sociedade e o futuro. E os russos estão a matar o nosso futuro com estas ações.

Escola em Kharkiv bombardeada pelas forças russas. Foto: Ukraine Now/Telegram

Segundo o ministro da Educação e Ciência (7 de março), 211 escolas secundárias já foram danificadas ou destruídas devido à agressão russa e este número continua a crescer. Quanto às universidades, as tropas russas atacaram cinco instituições de ensino superior na região de Kharkiv. 

Nós acreditamos no melhor, mas esperamos o pior. No entanto, estou confiante de que reconstruiremos tudo em conjunto e o tornaremos ainda melhor.

Os meus colegas professores estão em contacto com os estudantes, a controlar constantemente se estes precisam de ajuda. Nós também estamos assustados.

Mas o importante é que os professores de Jornalismo começaram imediatamente a ser voluntários na frente da informação para criar materiais verdadeiros sobre a guerra, traduzi-los, distribuí-los entre os meios de comunicação social estrangeiros, bem como ajudar quem quer que possam.

Mas quão relevante será o estudo da história… Estou certa de que as matérias de ‘Jornalismo Internacional’, ‘Relações Internacionais’ e ‘Direito Internacional’ se tornarão muito populares entre os estudantes. Afinal de contas, todos quererão compreender o que aconteceu. Talvez voltemos a sugerir que o formato da diplomacia está desatualizado e talvez, muito em breve, falaremos acerca da nova ordem mundial e o sistema de relações internacionais.

Agora estou em Kiev, porque estive aqui toda a minha vida, e apesar do perigo, ainda é difícil para mim decidir sair daqui. 

Oleksandra Hondiul, professora de jornalismo em Kiev, antes da invasão russa. Foto: D.R.

Atualmente, sou voluntária na área da informação. Acima de tudo, traduzo notícias e artigos para inglês, escrevo os meus próprios pequenos materiais informativos nas minhas páginas nas redes sociais e divulgo constantemente informações importantes entre os meus subscritores. Tento também banir as notícias falsas russas. 

Transferi parte do dinheiro que ainda tinha para as Forças Armadas Ucranianas, porque estas pessoas estão agora a garantir a minha segurança. E se falarmos dos últimos dias – então reli Sun Tzu, ‘A Arte da Guerra’, e agora li Clausewitz, ‘Sobre a Guerra’. Muito relevante e útil!

A situação é agora a chamada ‘escalada’, à luz da teoria de conflito. Pelo menos é assim que eu vejo a situação. Porque compreendemos que muitas das forças militares da Rússia já estão exaustas, por isso querem fazer o pior dos piores para minar o sentimento de segurança dos ucranianos.

Os ocupantes russos (que estão em cativeiro) dizem em alguns vídeos que não sabiam para onde tinham sido enviados pela Rússia e que não eram culpados. Mas sejamos honestos. Há regras na guerra. E de acordo com as regras de guerra, os militares não devem disparar contra civis (especialmente crianças), não devem disparar contra as ambulâncias. 

E o que vemos é que os militares russos estão a comportar-se como desumanos. Eles sabem exatamente o que estão a fazer. Eles matam todos os seres vivos. Claro que eles não esperavam encontrar tal oposição por parte dos ucranianos, cuja raiva e ódio pode conquistar qualquer tanque. Porque nós não o perdoaremos! Nós nunca os iremos perdoar! O sangue de crianças, civis, voluntários, dos nossos militares está nas mãos de Putin e de todos aqueles que o apoiam. 

Se falarmos dos meios de comunicação ucranianos, eles trabalham bem e trabalham 24 horas por dia, sete dias por semana. Vários canais fundiram-se numa rede, United News,, e transmitem informação constantemente uns para os outros. Este é um novo nível de desenvolvimento do ecossistema dos meios de comunicação social na Ucrânia. Muitos meios de comunicação social cobrem as notícias no Telegram, porque a maioria das pessoas agora vê televisão ou usa o Telegram. 

A luta dos meios de comunicação ucranianos é agora extremamente importante devido à forte desinformação que vem da Rússia e ao seu desejo de ocupar o nosso espaço mediático. Parece-me que a Ucrânia depois da guerra vai publicar muitos guias sobre como lidar com a desinformação hostil. Como é que o fazemos agora? Envolvemos não só jornalistas profissionais, mas também cidadãos comuns que podem procurar canais e páginas hostis nas redes sociais, bani-los, escrever comentários sobre a situação real na Ucrânia nas páginas de pessoas famosas na Rússia, na Europa e na América. Os cidadãos da Ucrânia também contam as suas próprias histórias de vida durante a guerra e assim disseminam informação.

Infelizmente, os russos ainda são cativos de notícias falsas, e penso que aí se sentem confortáveis, porque realmente não acreditam que a Ucrânia esteja em guerra, mesmo quando ouvem relatos de parentes próximos. É claro, é ótimo que haja russos que vão a manifestações contra a guerra, mas eles estão tão afogados no regime de Putin que não sabem como sair dali. Além disso, a desinformação russa destina-se em primeiro lugar aos russos, para que estes continuem a apoiar o governo russo e não vejam a situação real.

Manifestação de apoio à Ucrânia em Almaty, no Cazaquistão Foto: Ukraine Now/Telegram

Parece-me que chegou a altura de chamar tudo pelos nomes. A agressão da Rússia, que se transformou em guerra, tornou-se agora no genocídio do povo ucraniano. Isto não é um conflito. Isto é guerra e genocídio.

Não posso fazer uma previsão precisa [acerca de como e quando o conflito vai terminar], porque a psicologia de Putin não o permite. Mas sei com certeza que a Ucrânia vencerá. E a Rússia vai criar uma nova “Cortina de Ferro” (como durante a Guerra Fria) do século XXI, ou iniciar ações militares não só com a Ucrânia, mas também com os países da NATO.

[A tensão política entre os dois países vai melhorar depois do conflito?] Não. Porque várias outras gerações de ucranianos não poderão perdoar estes assassinatos brutais dos russos.

A Alemanha enveredou em tempos por um caminho semelhante, mas carregou esta memória histórica com dignidade e ainda tem ecos do seu passado. 

A Rússia terá um caminho um pouco diferente. Putin é pior do que Hitler. Putin é uma combinação de todos os piores ditadores da história. Portanto, a Rússia ficará isolada durante muito tempo e não será capaz de lavar rapidamente o sangue das suas mãos. Talvez um dia, se a democracia reinar na Rússia e forças mais liberais da oposição chegarem ao poder, a vejamos de forma diferente. Mas definitivamente não será no século XXI.”

Oleksandra Hondiul
Professora Universidade Borys Grinchenko, em Kiev

Artigo editado por Filipa Silva