“Comer/Beber” é o quinto livro que Filipe Melo e Juan Cavia produzem em parceria, depois de três volumes de “Dog Mendonça e Pizzaboy” e de “Os Vampiros”. A dupla esteve presente na Comic Con Portugal 2017 a distribuir autógrafos e a responder às perguntas dos fãs.

Ao JPN falaram do mais recente trabalho, do percurso conjunto e de um evento que de início pareceu a Filipe Melo coisa de um “louco” e que hoje lhe inspira energia para continuar. É assim, diz, quando “dois desgraçados que fazem um livro de 1.500 exemplares” almoçam com “o gajo do Prison Break” e são “tratados da mesma forma”.

Um livro, dois contos 

“Nós temos tido uma carreira bastante esquizofrénica na banda desenhada”, assume Filipe Melo. Talvez por isso, as semelhanças entre os livros anteriores e esta nova história sejam quase inexistentes.

O escritor, que também é músico, salienta as diferenças nas temáticas das obras que, segundo ele, passaram pela transição de enredos tradicionais, “em que se salva o mundo” e “cheias de elementos fantásticos”, para histórias “intimistas”.

A história divide-se em dois contos – “Majowski” e “Sleepwalk” – distintos em termos de espaço e de tempo. Um desenrola-se na época do regime nazi e outro passa-se no Arizona, nos EUA, na década de 80.

Juan Cavia explica: “Uma história está condicionada porque é um acontecimento verídico [a que se passa em Berlim, em 1940] e a outra tem a ver diretamente com a narrativa”. O ilustrador argentino diz ainda que os dois contos têm algo em comum: “Assim como a comida e a bebida evocam história, os dois enredos evocam coisas ligadas ao imaginário”. O paladar e a memória cruzam-se.

Filipe complementa, dizendo que “tanto em Portugal como na Argentina, durante os anos 80 [década de nascimento dos autores], havia um fascínio muito grande pelos Estados Unidos, mas era aquela cultura extravagante, pop, e não este interior da América em que não se passa exatamente nada”.

“Uma história mais pequena, mais pessoal, mais subjetiva”

“Este livro foi uma experiência”, afirma Juan Cavia perentoriamente. O ilustrador estabelece a diferença entre esta obra e as duas primeiras, em que a narrativa era muito distinta. Sublinha ainda que “é uma história mais pequena, mais pessoal, mais subjetiva”. Ao nível dos pormenores, Cavia diz que o livro requer grande atenção do leitor.

O tratamento da escrita e da imagem, foi feito para que o livro ficasse “o mais pessoal possível”, o que foi um “desafio”. Relativamente à crítica e ao público, Filipe Melo reitera que foi feito o possível para se eliminar esse tipo de expectativas, já que “é um livro de edição limitada” que não será reimpresso, pelo que o sucesso, diz, será atingido quando já não tiverem “livros nas mãos”.

Uma dupla à distância

Tudo começou com uma visita à Argentina há 14 anos, explica Filipe Melo. O caminho de ambos convergiu quando os dois trabalhavam no cinema, algo que ainda não deixou de acontecer. “Acabamos por ficar amigos e quando precisei de um artista de storyboard recomendaram-me o Juan”. O sucesso desta parceria, explica-se, segundo Filipe, “com a compatibilidade de feitios e com o respeito” mútuo.

Quanto ao futuro da dupla, a distância obriga a que a maioria dos projetos se tenham desenvolvido “via Skype”. Juan refere ainda que a tendência é a de “quando acaba a produção de um livro” se começa um novo. Filipe Melo diz que é preciso haver consciência de parte a parte de que cada trabalho é algo que vai “durar muitos anos”. “A ideia inicial tem que ser boa para nós sabermos que vamos estar muito tempo com aquilo”, frisou.

Filipe Melo e uma vida multifacetada

Filipe é músico de profissão. Leciona na Escola Superior de Música de Lisboa, já ganhou um prémio no Fantasporto e já trabalhou em cinema e televisão. Sendo todas áreas muito distintas, o autor de “Comer/Beber” diz que partilha a mesma característica com Juan Cavia. “Nenhum de nós tem a banda desenhada como profissão, nem sequer sei se isso é possível no nosso meio atual”, referiu o autor. Contudo, é esta multiplicidade de trabalhos que lhes permite serem “melhores na banda desenhada”.

Filipe Melo Foto: Miguel Ângelo Afonso

Conciliar todos os projetos é uma questão de harmonia e cooperação entre as pessoas, segundo Filipe Melo. Dando o exemplo da música, o autor diz que o “processo criativo é muito semelhante nas várias áreas”. “Quando se toca com um grupo de pessoas, é preciso aproveitar as características de cada músico, conversar com as pessoas para perceber qual a melhor para a música”, explicou Filipe.

Juan e o Óscar

“O Segredo dos seus Olhos” é o filme no qual Juan Cavia participou e que arrecadou o Óscar de melhor filme estrangeiro em 2010. O ilustrador não estava à espera do prémio: “não era [um filme de] vamos aos Óscares. Nada disso”. Porém, quando saiu, “a receção na Argentina foi muito grande”. O processo de produção foi intenso, conta Juan, que estava em Tondela quando foi surpreendido pela vitória nos galardões da Academia norte-americana.

Juan Cavia

“Foi uma experiência esquisita”, conta o argentino, que diz que nem celebrou na altura, tamanho era o seu cansaço na elaboração de “Dog Mendonça e Pizzaboy 2”, com FIlipe Melo. Juan Cavia diz que trabalhou depois com o realizador do filme numa outra película de animação: “Matraquilhos”. A experiência, diz, foi enriquecedora, dado que conheceu muita gente com quem pôde aprender “mais desenho do que em 12 anos de estúdio”.

Comic Con parecia coisa de “loucos”

Entre risos, Filipe Melo diz que não é preciso “dar graxa”: a Comic Con tem sido “uma parceira”. No mundo português da banda desenhada, o prémio Comic Con é o único com regalia monetária no país. O autor português ressalva o seu efeito “positivo”, pois foi essa recompensa – a dupla venceu no ano passado o prémio de melhor argumento e o galardão anual de BD com “Os Vampiros” – que permitiu a criação da obra “Comer/Beber”.

Filipe salienta ainda a dimensão que o evento de cultura pop tem adquirido ao longo dos anos. “Nós estamos na Exponor e não se consegue andar lá em baixo”, realçou. Recordou ainda quando lhe foi apresentado o projeto, num “iPad com desenhos” e o objetivo de “20 mil visitantes” na primeira edição. Numa reunião com o fundador da Comic Con Portugal, Paulo Cardoso, Filipe pensou: “este homem está completamente louco”.

Atualmente, o autor revela-se “pasmado” com o resultado final: “quem é que imagina que isto ia acontecer em Portugal?” Filipe reforça ainda a amabilidade e respeito com que os artistas são tratados pelos organizadores, ao ponto de “dois desgraçados que fazem um livro de 1.500 exemplares” almoçarem com “o gajo do Prison Break” e serem “tratados da mesma forma”. “É isto que nos dá energia para continuar”, concluiu.

Artigo editado por Filipa Silva