Tumultos “numa escala inaudita há anos na Irlanda do Norte“. É desta forma que as autoridades apelidam o ambiente de crispação que tem colocado o país no epicentro de distúrbios, responsáveis por causar ferimentos em cerca de 90 agentes da polícia, um fotojornalista e um motorista de autocarro. Registam-se, igualmente, dezenas de detidos entre os quais crianças, com idades a partir dos 12 anos.

O eclodir da tensão   

O primeiro dia de conflitos aconteceu a 29 de março, quando agentes de autoridade  foram atacados, após tentarem separar uma multidão de cerca de 40 pessoas. Nas cinco noites seguintes, incidentes de características semelhantes tiveram lugar por toda a cidade de Londonderry.

Num abrir e fechar de olhos, as manifestações espalharam-se pela capital da Irlanda do Norte, Belfast. De registar que um dos protestos resultou em novo ataque à polícia, deixando 15 agentes com queimaduras e outras lesões.

Um dos pontos de ebulição do clima de revolta que se faz sentir aconteceu na quarta-feira, dia 8 de abril, perto de um troço do “muro da paz”, que separa comunidades lealistas (pró-Reino Unido) e nacionalistas (pró-reunificação irlandesa), em Shankill e Springfield, no coração da capital, e que envolveu quase 600 pessoas.

Belfast

Tarja colocada nas imediações do “Muro da paz” contra a fronteira de mar estabelecida sobre a Irlanda do Norte. Foto: Shutterstock

Entre arremessos de cocktails molotov e de tijolos, o objetivo era claro: atingir quem estivesse do lado de lá da barreira física, inclusivamente os agentes chamados ao local para dispersarem os desordeiros – veículos, caixotes do lixo e pneus foram incendiados e um jornalista e um motorista de autocarro foram agredidos.

Pela primeira vez em sete anos, a Polícia da Irlanda do Norte (PSNI) recorreu a canhões de água (proibidos no resto do Reino Unido) para repelir ataques com pedras, fogo de artifício e outros projeteis de grupos, na sua maioria jovens, de ambas as comunidades.

Em reações aos acontecimentos, Simon Coveney, o ministro dos Negócios Estrangeiros da República da Irlanda, afirmou, em declarações à RTÉ, que estas “são cenas que não se viam na Irlanda do Norte há muito tempo, são cenas que muitas pessoas pensavam que tinham ficado consignadas na História”.

Os ecos dos sangrentos “Troubles

Ainda que seja bastante precoce para estabelecer um paralelismo com os vastos anos de guerra civil que devastaram a província britânica, resultante de confrontos entre protestantes unionistas e católicos republicanos, e que levaram à morte de mais de três mil pessoas entre 1960 e 1998, a verdade é que os episódios de violência e vandalismo ocorridos em diversas localidades da ilha há várias noites consecutivas têm merecido a atenção internacional e um apelo à acalmia por parte de todos os quadrantes da política da Irlanda do Norte, do Reino Unido e da República da Irlanda.

O atual panorama afigura-se assim como o regresso da violência sectária às ruas da Irlanda do Norte, 23 anos depois da assinatura dos célebres “Acordos de Sexta-Feira Santa”, de 1998, que puseram fim aos Troubles – a batalha de três décadas pelo futuro político e constitucional do território norte-irlandês.

Envolvência de grupos paramilitares

Segundo a BBC, fontes da polícia dizem que os grupos paramilitares Força Voluntária do Ulster (UVF) e Associação de Defesa do Ulster (UDA) “encorajaram” os motins em Belfast, Newtownabbey e Londonderry, com o “The Guardian” a reportar que a mobilização está a ser feita nas redes sociais.

“O facto de ser violência sectária e de haver grandes grupos de ambos os lados é algo que não vimos durante vários anos“, disse aos jornalistas Jonathan Roberts, da polícia da Irlanda do Norte (PSNI). Roberts referiu ainda que adolescentes com apenas 13 anos são suspeitos de envolvimento, decorrente de incentivos por parte de adultos, e o enorme volume de explosivos usados sugere “um nível de planeamento prévio“, motivo pelo qual a PSNI está a investigar a possibilidade de grupos paramilitares estarem envolvidos.

Brexit e Sinn Féin no centro do problema

Mas afinal quais são os motivos que desencadearam o escalar de violência em solo norte irlandês? O primeiro está relacionado de forma direta com o acordo do Brexit e com as tensões internas que este gerou.

O acordo do governo de Boris Johnson com a União Europeia criou uma fronteira no mar da Irlanda, cujos efeitos começaram a ser sentidos desde janeiro. Com a sua implementação, a Irlanda do Norte mantém-se na esfera do mercado único e da união aduaneira, com os bens chegados da Grã-Bretanha a serem objeto de inspeção, uma solução que os unionistas rejeitam por considerarem que, na prática, equivale ao estabelecimento de uma nova fronteira no mar da Irlanda entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido.

O presente protocolo tem levado a perturbações na distribuição de bens e alimentos na província, com algumas empresas britânicas a recusarem enviar mercadorias através do mar da Irlanda, ou excluindo os irlandeses do Norte de encomendar determinados artigos online.

Assim, o Brexit tem vindo a criar tensões nas comunidades lealistas há meses, que começam a aperceber-se cada vez mais de como é diferente agora o tratamento dado à Irlanda do Norte, em comparação com o resto do Reino Unido, alavancando um sentimento de injustiça e traição perante a ação de Boris Johnson.

Belfast

Os confrontos têm inundado as ruas de Belfast, capital da Irlanda do Norte. Foto: Shutterstock

O segundo motivo foi a gota de água num copo quase cheio e incendiou ainda mais o cenário vivido quando as autoridades decidiram há poucos dias não atuar judicialmente contra os líderes do Sinn Féin, antigo braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA), que, em junho de 2020, reuniram-se para um funeral de Bobby Storey, proeminente membro do IRA, numa altura em que, por causa das restrições da pandemia, a população estava impedida de prestar homenagens semelhantes aos seus familiares mortos pela Covid-19.

Apelos de resolução multiplicam-se

Após o estalar da onda de choque surgiram rápidas reações aos incidentes de todo o quadrante político. O governo de partilha de poder entre o Partido Unionista Democrático (DUP, unionista conservador) e o Sinn Féin (nacionalista de esquerda) afirmaram, através de um comunicado conjunto que “a destruição, a violência e a ameaça de violência são completamente inaceitáveis e injustificáveis, independentemente das preocupações que possam existir nas comunidades”.

Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, através de uma mensagem endereçada na rede social Twitter, reforçou que “a maneira de resolver as diferenças é por meio do diálogo, não da violência ou da criminalidade”.

Também o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de descendência irlandesa, juntou-se aos apelos por calma lançados pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e pelo seu homólogo irlandês, Micheál Martin.

Também a Comissão Europeia se manifestou, condenando “nos termos mais fortes possíveis” os distúrbios que ocorreram nos últimos dias, apelando a que os envolvidos se “abstenham imediatamente” dos “atos de violência”.

Artigo editado por João Malheiro