Quando, em 2007, Tiago Afonso foi para a zona do Bacelo, no Freixo, onde 16 famílias de uma comunidade cigana se preparavam para ficar sem o acampamento onde viviam, o sentimento era de “urgência”: “Como tinha uma atitude ligada ao ativismo, levava sempre a câmara. Tanto para poder fazer pequenos filmes, como para as pessoas terem acesso a imagens que não tinham através dos média”, recorda o realizador ao JPN.

Chegou a dormir no acampamento, a comer com a comunidade, teve quem lhe chorasse no ombro e sem dar por ela, ou programar isso, começava ali “um fresco de memória” que só conseguiria completar 14 anos depois. 

Tiago Afonso reencontrou alguns membros da comunidade cigana do Bacelo, 12 anos depois de terem acabado com o acampamento onde viviam, no Freixo. Foto: Porto/Post/Doc/D.R.

Depois, porque depois do Bacelo veio o Aleixo, e com este uma nova urgência de dar voz a quem, em breve, veria literalmente a casa a ir abaixo. Em 2008, era implodida a primeira torre, mas a derrocada do bairro prosseguiria anos à frente. Como uma ferida que não sara, a história não encontrava forma de fechar. 

“O próprio filme foi-me atrasando, foi-me criando novas situações que eu achava que tinha que incluir para ser o mais honesto possível com as pessoas”, explica Tiago Afonso.

Mais tarde, a lente focou-se na Feira da Vandoma, também ela povoada por gente que, em breve, se teria de deslocar para a periferia, deixando para trás a vista de rio para se instalar – e chegamos a 2016 -, numa artéria de alcatrão em Campanhã.

O arco temporal entretanto passado deu matéria a “Distopia: Porto 2007-2021”, filme vencedor da competição nacional do DocLisboa que este sábado (27) volta a ser exibido no Porto/Post/Doc (Passos Manuel, 19h30), onde concorre na secção Cinema Falado. Mas o processo foi tudo menos pacífico para o realizador. 

“Não foi destrutivo, foi mutilante”, diz pelo telefone. “Acho que qualquer processo de criação tem partes destrutivas e partes construtivas, mas não me consegui libertar deste processo ao longo dos 14 anos, dada a responsabilidade que eu sentia perante as pessoas que se tinham deixado filmar… Sofri muito, porque sentia que tinha que acabar o filme de alguma maneira e, às vezes, pensava que não ia conseguir”, confessa.

Para o conseguir, dois aspetos revelaram-se decisivos: um subsídio de finalização do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e a programação do filme no DocLisboa deste ano, onde acabou premiado.

Um filme “político”

Bacelo, Aleixo e Vandoma são os epicentros das três partes em que se organiza o documentário de Tiago Afonso. Um filme cuja cinematografia crua, de algum modo precária, parece sintonizada com o objeto que trata. 

Também a Feira da Vandoma foi forçada a mudar de morada. Saiu das Fontaínhas para passar a realizar-se em Campanhã.

É sobre o desmembramento destas comunidades, é sobre gentrificação de um modo mais geral e é um filme assumidamente “político”, porque contestatário da ação dos poderes locais da cidade, da era Rui Rio à de Rui Moreira, nestes e noutros dossiês relacionados com as populações mais pobres. 

Para o autor “há uma data de violências sociais, pessoais, emocionais” por trás destes processos que não podem ser condescendidas, razão pela qual o autor assume uma posição: “[Neutralidade] não existe para mim. (…) Não falo muito nos meus filmes. Não ponho voz off, não me ponho a explicar. Eu acho que o espectador tem de fazer um trabalho, mas eu antes de ser cineasta sou um cidadão. E para fazer aquele filme, antes de estar a filmar, tenho que estar do lado daquelas pessoas”, afirma.

Pessoas que, em geral, fazem também elas um percurso no filme que acaba por estar no cerne desta distopia: a adaptação às circunstâncias, uma certa resignação. “A coisa que mais nos distingue dos animais não é o polegar opositor, é a nossa capacidade de adaptação. Essa acomodação é a parte mais triste para mim, é que as violências são feitas e com o tempo tudo sara, porque as pessoas adaptam-se”.

O Porto “cuspiu-me”

Tiago Afonso fala a partir de Paris para onde foi viver este ano com o intuito de fazer mestrado e doutoramento. Tinha chegado na véspera do Porto e estava satisfeito por ter visto o Grande Auditório do Rivoli “com muita gente” para ver a primeira exibição do seu filme na cidade. Um momento feliz no contexto de uma separação problemática.

Isto porque, explica, no Porto, as oportunidades de trabalho desapareceram, a situação financeira ficou “drástica” e a solução foi sair: “o Porto vê-me como um punk maluco com a mania da política, e cuspiu-me, expulsou-me. Adoro as pessoas, adoro a cidade, é a minha cidade, mas houve uma quebra de confiança da cidade para comigo que eu entendo, mas não aceito, e que destruiu um bocado a minha relação com ela.”

No prémio conquistado no DocLisboa, onde o filme se estreou, Tiago Afonso vê um bom sinal – “a brincar, a brincar, pode-se dizer que começou bem em termos nacionais” – e uma clara mais-valia “porque multiplica as hipóteses de ele ser visto.” Um eventual prémio no festival de cinema documental do Porto, a cidade que retrata no filme, teria um sabor especial? A proposição não convence o autor, que prefere destacar a exposição do trabalho: “espero que a próxima sessão também seja concorrida, porque a minha intenção é que as pessoas do Porto também conheçam melhor o Porto”, conclui.

Em Paris, a vida prossegue e o projeto do momento não passa por planos de rodagem. Até ao final do ano letivo, Tiago Afonso quer fazer “uma pequena publicação” sobre o documentarista japonês Shinsuke Ogawa (década de 60) – “sobre o qual há muito pouca documentação” – e de um coletivo que se formou à sua volta: o grupo Ogawa Productions

“Distopia: Porto 2007-2021” passa este sábado no cinema Passos Manuel (19h30) a par de “Hotel Royal” de Salomé Lamas, que também integra a competição Cinema Falado – há 14 filmes a concurso nesta secção dedicada ao cinema falado em português. Quanto ao Porto/Post/Doc, entra na reta final, mas ainda há muito para ver até dia 30

Nesse dia, véspera de feriado, o Coliseu do Porto acolherá um espetáculo concebido pelo realizador Pedro Costa e pelo grupo de música barroca Os Músicos do Tejo. Chama-se “As Filhas do Fogo”, mistura cinema, teatro e música e tem Cabo Verde em pano de fundo.