O JPN viajou até Estrasburgo para conhecer por dentro o Parlamento Europeu. Em conversa com eurodeputados, funcionários e até um condutor de Uber, fomos ao Bairro Europeu para perceber o que é e como funciona uma Sessão Plenária e como se convive nos meandros de um dos centro de decisões da Europa.
Por momentos, se fecharmos os olhos, estamos de volta à escola. A campainha ecoa pelos corredores e funde-se com muitos passos apressados que rumam em várias direções. É terça-feira, 3 de maio, estamos no segundo dia da Semana Plenária deste mês. São oito da manhã em Portugal, nove em Estrasburgo e “go time” no Parlamento Europeu (PE).
Ao contrário dos eurodeputados que “voam” para chegar a horas ao hemiciclo – não o fazem de verdade, até porque, por aqui, muito se discute o cuidado com a pegada de carbono -, nós temos tempo.
A sessão a que vamos assistir, com o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, é só às 11h30. Não deixa de ser curioso o nome do debate, “Isto é a Europa”. Mamadou, o condutor de Uber que trouxe o JPN até ao Quartier Européen – o Bairro Europeu -, utilizou a mesma expressão, mas com um tom diferente: “Isto é a Europa. Não é francês”. Não há uma ligação entre as instituições europeias e a cidade, explicou. “As pessoas não querem saber, não se interessam. O que se passa lá é o que se passa lá”.
Não deu para prolongar muito mais a conversa. Rapidamente chegámos ao edifício Louise Weiss, o principal dos cinco que dão forma ao Parlamento. À entrada, distribuem-se folhetos a propósito de uma pequena manifestação, algo aparentemente inofensivo. Ainda assim, “desde os últimos atentados”, há uma “vigilância acrescida, porque existem sempre ameaças contra as instituições”, revelou ao JPN um membro da equipa de segurança.
Dizem alguns entendidos que o revestimento a placa de vidro do edifício principal do Parlamento é símbolo de uma democracia aberta e transparente, e que o aparente inacabamento do telhado alude à natureza contínua do projeto europeu. Menos subtis são as enormes sacolas azuis de pano, estampadas com um “I love EU”, carregadas pelos curiosos das visitas guiadas que vão preenchendo os labirínticos corredores do edifício.
Viemos, entretanto, até ao gabinete de Manuel Pizarro (PS), membro da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D). O Parlamento Europeu é composto por 705 deputados, eleitos nos 27 Estados-Membros da União Europeia alargada, que se agrupam no hemiciclo de acordo com os sete grupos políticos, e não conforme a nacionalidade. O mesmo acontece nos gabinetes a que todos têm direito, quer em Bruxelas, quer em Estrasburgo.
“Há separação de andares nos grupos políticos e depois juntam-se os deputados da mesma nacionalidade de cada grupo político. Aqui, nesta zona do corredor, estão oito dos nove eurodeputados portugueses [do grupo S&D], porque o Pedro Silva Pereira, como é vice-presidente do PE, tem direito a um andar, a uma instalação separada”, explica o deputado, ex-vereador da Camara Municipal do Porto.
Ainda com os hábitos da antiga profissão de médico, “entre as 7h30 e as 8h00”, Manuel Pizarro já está sentado no Parlamento. Faz, “numa primeira fase, uma leitura do que está pendente” e prepara as reuniões que vai ter em cada dia.
No quotidiano, não existe bem uma rotina, algo que para Lídia Pereira (PSD), do Partido Popular Europeu (PPE), até seria positivo. Tudo depende das comissões em que estão envolvidos, nos relatórios em que estão a trabalhar.
“Por exemplo, eu agora estou a trabalhar num relatório acerca dos criptoativos e das criptomoedas, e, portanto, eventualmente posso começar o dia com uma reunião com uma empresa relacionada com blockchain ou com um representante de uma plataforma de criptomoedas”, refere a eurodeputada.
Depois, as reuniões de comissão, “reuniões de coordenação com os eurodeputados do PSD, ler e estudar as matérias” que estão a ser trabalhadas. “E, claro, arranjar sempre um tempinho para ir ao ginásio, porque também precisamos de descomprimir, e eu tenho esse cuidado”, ressalva.
Ao contrário do que acontece em Portugal, a agenda dos eurodeputados está dividida por semanas. Em Bruxelas, acontecem as semanas de comissão – existem 26 comissões permanentes, cada uma especializada numa área específica, como Pescas ou Direitos Humanos – e as semanas de trabalho de grupo parlamentar, focadas no trabalho político interno de cada partido europeu. Há ainda a semana plenária, em Estrasburgo, onde são aprovados, ou não, os relatórios que vão sendo elaborados. Múltiplos debates e muita negociação são algo que todas têm em comum.
Por último, a semana verde, que na verdade nada tem que ver com o ambiente. É um espaço livre no calendário para os eurodeputados poderem trabalhar no país de origem, visitar associações, universidades, fábricas ou empresas, por exemplo.
Em 1992, os governos dos estados-membros da União Europeia (UE) decidiram por unanimidade estabelecer no Tratado da UE as sedes oficiais das instituições europeias. No que ao Parlamento Europeu diz respeito, ficou então acordado que a sede oficial seria em Estrasburgo, onde se realizariam a maioria das sessões plenárias, enquanto que as reuniões das comissões parlamentares seriam em Bruxelas. O Secretariado ficaria no Luxemburgo. Uma dispersão contestada por muitos, tanto pelo lado ecológico, como pelo lado financeiro. Em 2014, o Tribunal de Contas Europeu calculou que a despesa total relacionada com a sede em Estrasburgo estaria na ordem dos 109 milhões de euros por ano, com mais cinco milhões de euros a contabilizar relativos às despesas de viagens. Em março de 2019, foi aprovada pela maioria dos eurodeputados uma resolução a solicitar uma sede única. Há, porém, quem argumente que a capital da Alsácia deva permanecer como sede oficial, pela sua História, que é simbólica para o projeto europeu.
Um grupo de WhatsApp para decidir votações
“Aquilo que para as pessoas do exterior pode parecer uma grande desordem, é uma desordem muito organizada, porque nós sabemos exatamente o que se está a passar. Aquilo, às vezes, anda num ritmo alucinante, tem de se estar muito atento”, descreve Manuel Pizarro a propósito das sessões de voto no hemiciclo, ao mesmo tempo que entra no gabinete Eduardo, um dos seus assistentes, com o guião para as votações que vão decorrer à tarde.
“Em cada grupo e em cada delegação tem de haver um trabalho para se coordenarem as votações, porque não é possível conseguir votar isto tudo sem guião”, sustenta. O tema mais polémico do dia são as listas transnacionais, sendo que os eurodeputados socialistas portugueses decidiram diferir da orientação de voto do grupo “em vários pontos”.
“Portanto, eu agora recebo esta lista, tenho que a ir estudar e tenho de me pôr em contacto com os outros colegas”. A troca de impressões acontece nas reuniões de delegação – e também através de um grupo de WhatsApp.
Durante o caminho até ao gabinete do deputado portuense, cruzámo-nos com Nuno Melo (CDS-PP), membro do Partido Popular Europeu. Os dois cumprimentaram-se e trocam algumas palavras. Mesmo sendo de grupos políticos muito distintos, afinal, une-os o país de origem: “Isto é um Parlamento que representa a Europa, mas cada um de nós não deixa também de representar o seu país. Há votações em que os alinhamentos correspondem ao interesse nacional. Não podemos ser ingénuos nessa matéria. As nações da Europa não desapareceram. O interesse particular também conta. O que de vez em quando não quer dizer que não haja polémicas entre uns e outros, depende [risos]”.
Todos os eurodeputados portugueses com quem o JPN conversou partilham uma visão de que o debate político europeu difere em boa parte do que se vai verificando no panorama nacional. “Aqui conseguimos ter um diálogo muito mais aberto, muito mais franco, muito mais construtivo, mesmo ao nível político, do que em Portugal”, afirma Francisco Guerreiro, eurodeputado d’Os Verdes/Aliança Livre Europeia.
Mas entre os políticos não se fala só de política. “Eu sou do FC Porto e acompanho o campeonato, portanto, há sempre conversas sobre futebol, mas também sobre muitas outras coisas. Cada deputado tem os seus hobbies. Eu, por exemplo, nas férias já fiz kitesurf, há quem faça surf, bodyboard, pesca submarina, há quem vá à caça, quem goste imenso de ler”, relata Lídia Pereira, eurodeputada do PSD. “Também é preciso fazer uma pausa para vermos as coisas com distância”, conclui.
As relações pessoais que se vão estabelecendo não acontecem apenas entre os deputados, até porque existem muitos mais intervenientes que contribuem para o funcionamento do PE. Em Estrasburgo, ao todo são 300 os funcionários (incluindo os grupos políticos).
Marisa Matias (BE), vice-presidente do Grupo da Esquerda no Parlamento Europeu, diz que com o passar do tempo – foi eleita pela primeira vez como eurodeputada em 2009 -, é normal que comecem “a entrar um bocadinho na vida uns dos outros”. “Eu fui consolidando amizades, fosse nas limpezas, na organização do espaço ou na interpretação. Há muitas [pessoas] que, entretanto, já se foram reformando, outras infelizmente já morreram”, diz.
“Há um senhor que trabalha aqui”, conta, “que tem uma casa em Portugal, perto de Leiria. Estamos sempre a brincar, porque eu digo que ele não me convida para ir à casa dele [risos]”.
A caminho da sala de imprensa, o JPN encontrou uma funcionária na área da limpeza, de nacionalidade turca, que ressaltou que, de facto, “toda a gente é simpática”, revelando ter colegas portuguesas a trabalhar consigo.
Para ser eurodeputado tem de se falar muitas línguas?
É hora de almoço. Na cantina, para a eventualidade de alguém perder a noção do espaço, os pratos estão carimbados com a bandeira da União Europeia. Os diversos aromas enviam para o olfato a mesma mensagem que a audição vai captando — as várias línguas, nacionalidades e culturas baralham-se e a segregação que se verifica apenas tem que ver com a preferência alimentar do momento.
Esta é, na verdade, uma característica importante do projeto europeu. São 24 os idiomas oficiais nos quais são interpretados e traduzidos os discursos dos eurodeputados. No hemiciclo, os políticos e jornalistas podem recorrer à interpretação simultânea das intervenções. Na bancada de imprensa, basta colocar os auscultadores e escolher o canal da língua preferida, aos quais estão atribuídos números. É quase como encontrar a frequência certa num rádio ou ir procurando, um a um, o canal correto na televisão.
Nesta semana plenária, os intérpretes não viajaram para Estrasburgo, como era habitual antes da pandemia. “Por razões de segurança sanitária, não podemos trabalhar a três por cabine como acontecia no passado. Isto exige um número muito elevado de cabines para cobrir todas as línguas oficiais do Parlamento e, assim sendo, não é possível fazê-lo em Estrasburgo, mas sim em Bruxelas, onde há mais salas disponíveis e onde as possibilidades técnicas são maiores”, esclarece a intérprete do Parlamento Europeu, Sofia Castanheira, em declarações ao JPN. O Parlamento emprega 270 intérpretes internos, podendo recorrer por vezes a mais de 1.500 intérpretes externos.
“Por outro lado, há uma tendência crescente de se falar inglês quando o inglês não é a sua língua materna”, revela, o que “dificulta” a interpretação, “porque por vezes as pessoas até acham que têm um bom domínio da língua inglesa, mas não é bem assim. Para nós [intérpretes] seria sempre muito mais fácil se todos os intervenientes falassem na sua língua materna e de forma espontânea, não textos lidos”, completa Sofia Castanheira.
Falar ou não em português (ou em qualquer outra língua) “é uma opção”, garante Marisa Matias. “Eu acho que o multilinguismo é um valor a defender na UE, portanto, no plenário eu falo sempre em português. Até porque essa é uma riqueza do projeto europeu. Não podemos alimentar esta ideia de que para se ser eurodeputado tem de se falar imensas línguas. Se falar, ajuda, mas não é isso que vai fazer um bom ou mau eurodeputado”, assevera.
Mostrar que os deputados não estão a “esconder nada”
Diminuir a distância entre as instituições europeias e os cidadãos é uma temática há muito debatida, que ganhou uma atenção acrescida com a “Conferência sobre o Futuro da Europa”. Junto à “Vox Box”, a zona media entre o hemiciclo e o bar dos deputados, Lídia Pereira diz não ter dúvidas sobre o quão fundamental é “explicar às pessoas” a importância da União Europeia. Um trabalho que “não pode ser” feito “só durante 15 dias numa campanha eleitoral a cada cinco anos”.
“Não há grande preocupação com aquilo que se passa na vida do Parlamento”, continua. Colocando um foco particular nos mais jovens, o objetivo é diminuir o distanciamento – ou a ilusão do mesmo. “O grande desafio que eu identifico é encolher ainda mais esta perceção de distância, porque na verdade ela não existe, é uma perceção de distância entre eleitores e eleitos no Parlamento Europeu”, explica a eurodeputada. Uma solução: as redes sociais.
“Olá, Lídia!”. O cumprimento chamou à atenção e fez parar a caminhada. Quem passa é o eurodeputado d’Os Verdes/Aliança Livre Europeia, Francisco Guerreiro, com a mulher e a filha, Emma. Ainda que em posições diferentes no espectro político, também Francisco Guerreiro é apologista da aproximação da Europa aos cidadãos, nomeadamente através da transparência.
Ao JPN, o político de 37 anos relembrou que “qualquer eurodeputado que é eleito não trabalha só para as pessoas que o elegeram, mas trabalha para o programa para o qual foi eleito e para 460 milhões de pessoas”. Um compromisso sério e, também por isso, “é importante mostrar à sociedade civil” que os deputados não são “isentos de responsabilidade” e que não estão “a esconder nada”. “No fundo, é isso também que eu acho que as novas gerações esperam dos políticos: que sejam muito mais centrados, mais humildes e que sejam o mais transparentes possível”, considera.
Emma is back in Strasbourg. Guess how long did she managed to stay in the @EUparliament plenary? pic.twitter.com/7xeaQjwP7J
— Francisco Guerreiro 🇵🇹 🇪🇺 (@FGuerreiroMEP) May 2, 2022
Uma “honestidade” e “transparência” que se estende aos familiares que viajam consigo. “isso faz parte também do que as pessoas esperavam de mim, ou seja, não esconder algo que é tão importante para mim que é a minha família”, considera. A filha mais velha já tem 14 anos e consegue “fazer a vida com os avós”, mas Emma é mais nova e por isso viaja com o pai, ficando até na creche do Parlamento. “Não estou aqui sozinho, como eurodeputado, um papel à parte de pai, de marido, de Francisco. É tudo junto. Isto foi um projeto que foi acolhido pela minha família e, portanto, a minha família faz parte desse processo”, completa.
Já passa pouco das seis da tarde. O sol já vai ficando cansado e o Parlamento mais vazio. Amanhã, o dia volta a começar cedo, com o debate onde vão ser anunciadas novas sanções da UE contra a Rússia.
Depois de um dia a ouvir eurodeputados portugueses, funcionários do Parlamento Europeu ou habitantes de Estrasburgo, inevitavelmente muito ficará por contar. Mamadou, o condutor de Uber francês que era para ter ido ao Porto, a um casamento, não fosse a pandemia. A funcionária de limpeza turca, em França desde 1980, que falou ao JPN num francês tímido e envolto em desculpas por não se saber expressar melhor. A carga física provocada pelas viagens constantes e as saudades de casa dos eurodeputados. Tudo também parte da experiência europeia.
Artigo editado por Tiago Serra Cunha e Filipa Silva
O JPN viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu.