Não é raro ouvir que ser guarda-redes é encarar a posição mais ingrata no futebol. Os comentários pejorativos estão à distância de um simples erro, pelo que a psicologia do atleta pode ser tão decisiva quanto as capacidades técnico-táticas. Entre falhas históricas e defesas inimagináveis, a vida entre os postes chega a ser dramática. E, por vezes, a melhor performance individual simplesmente não é suficiente para decidir a contenda.

O Bélgica-Estados Unidos dos oitavos de final, em São Salvador da Bahia, foi talvez o encontro mais emocionante de todo o Mundial 2014. O guarda-redes Tim Howard protagonizou 16 defesas e manteve, praticamente sozinho, o conjunto norte-americano na discussão do resultado até ao limite das forças. No entanto, o atleta de 35 anos acabou cruelmente do lado dos derrotados. A vitória belga chegou no prolongamento por 2-1.

Desde que as estatísticas do Campeonato do Mundo começaram a ser registadas em 1966, nunca um guardião tinha travado tanta investida adversária num só jogo. Na internacionalização 104 pela “Stars and Stripes”, Howard fez a primeira defesa logo aos 43 segundos, ao estender o pé direito para travar um chuto de Divock Origi. Assim que se levantou do relvado, apertou o punho em direção aos seus companheiros e sinalizou o início do jogo de uma vida.

A Bélgica carregava resmas de talento ofensivo nas botas de Eden Hazard, Kevin De Bruyne e Romelu Lukaku. Em 120 minutos arriscou 38 remates – o maior registo desde 1974 –, dos quais 27 saíram enquadrados com a baliza dos EUA. Howard encontrou um antídoto diversificado: 12 defesas com tronco ou mãos, mais quatro estiradas com os pés.

Apesar da onda atacante desenhada pelos comandados de Marc Wilmots, o nulo manteve-se até ao final do tempo regulamentar. A resistência do guarda-redes que atuava pelo Everton só quebrou no terceiro minuto do prolongamento: De Bruyne recebeu na grande área, contornou dois adversários e rematou cruzado para o primeiro golo belga. Aos 115’, Lukaku foi lançado em profundidade pela meia-esquerda e disparou sem apelo nem agravo. O golo de honra de Julian Green (117’) empurrou os Estados Unidos para a frente nos últimos minutos e quase estimulou um desempate por grandes penalidades.

“É doloroso”, resumiu Howard após o apito final. “Fizemos um grande jogo e fomos derrotados por uma equipa muito boa. Não podíamos ter dado mais e é dececionante sair desta maneira”. Mais tarde, Tim recordou como foi efetuar todo aquele recital de defesas no relvado da Arena Fonte Nova. “Naquele dia não podia estar mais nervoso. Quando o jogo começou nunca me quis preocupar com o número de defesas. Tentava apenas estar pronto para o próximo ataque e organizar a defesa. Só no final do jogo, quando estava a fazer testes de doping, é que alguém mencionou o recorde. Dezasseis defesas? Não fazia sentido porque não me lembrava de ter defendido tanto”, confessou em entrevista à página oficial da FIFA.

Conhecido pela barba espessa e cabeça calva, Tim Howard jogou o Mundial 2014 no auge do seu rendimento desportivo. Era um líder incontornável na seleção orientada por Jürgen Klinsmann, que ultrapassou um grupo composto por Alemanha, Portugal e Gana. Escusado será dizer que o guarda-redes foi eleito o homem do jogo na despedida norte-americana do Brasil. Ao estabelecer o recorde de defesas em Mundiais, Howard recebeu elogios de várias partes. O desempenho diante da Bélgica ofereceu-lhe também uma parcela de fama nas redes sociais, já que foi celebrado virtualmente através da hashtag #ThingsTimHowardCouldSave.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.