Corria o ano de 1872 quando Escócia e Inglaterra inauguraram o primeiro jogo de futebol entre seleções. Aos poucos, a modalidade foi ganhando admiradores fora das fronteiras britânicas, passando a integrar os Jogos Olímpicos, ainda que sob uma perspetiva de demonstração, no princípio do século XX. Pelo caminho era fundada, em 1904, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA). O organismo tomou conta da logística dos torneios olímpicos de futebol após a Primeira Guerra Mundial, embora tivesse ideias mais ambiciosas para executar a longo prazo.
Em 1914, Jules Rimet viu rejeitado, no congresso da FIFA, um primeiro projeto para o Campeonato do Mundo. O conflito mundial e a adjacente crise económica obrigaram o presidente da federação francesa a esperar, mas sem nunca esmorecer. A substituição de jogadores amadores pelo profissionalismo nos anos vinte revelou-se o clique necessário para que o futebol quebrasse uma relação de obediência máxima ao movimento olímpico. Era uma questão de tempo até que o horizonte visionário de Jules Rimet, entretanto eleito presidente da FIFA em 1921, conquistasse os seus pares.
Em maio de 1928, o dirigente francês decide incentivar de vez a criação do torneio quadrienal. Todos os membros presentes no congresso de Amesterdão ratificaram a proposta, mas duvidaram acerca do local onde se devia realizar tal evento. Perante múltiplas candidaturas dos dois lados do Oceano Atlântico, a FIFA escolheu homenagear a terra natal dos vencedores olímpicos em Paris (1924) e Amesterdão (1928): o Uruguai, que comemorava o centenário da sua independência.
Apesar de o futebol ter ficado excluído do programa olímpico para 1932, em Los Angeles, Rimet levou até ao fim a promessa de organizar em 1930 um torneio internacional para seleções de todo o globo. As maiores dificuldades consistiam tão só em reunir os participantes. Numa altura pautada pelas consequências da Grande Depressão, que afetou negativamente milhões de famílias, muitos jogadores europeus recusam-se a viajar 30 dias de barco para jogar futebol durante duas semanas. A justificação é simples: as federações não tinham fundos suficientes para efetuar a expedição, ao passo que os jogadores estavam com medo de perder os respetivos empregos no regresso.
Nesse sentido, várias seleções do Velho Continente que já estavam inscritas acabaram por acompanhar o Mundial 1930 em casa. Desse lote faziam parte Alemanha, Espanha, Holanda, Itália e a própria Inglaterra, três vezes medalha de ouro olímpica. Tudo países onde o fenómeno futebolístico já recolhia grande entusiasmo. Para minimizar o estrago, o Uruguai propôs-se a compensar financeiramente a deslocação das federações participantes. Bélgica, França, Jugoslávia e Roménia aceitaram o convite para ir ao Uruguai defender a honra europeia entre nove países sul-americanos.
Os jugoslavos preferiram viajar sozinhos no paquete “Florida”. Belgas, franceses e romenos lotaram o “Conte Verde”, que também transportava Jules Rimet. O chefe máximo da FIFA trazia na bagagem a “Vitória com Asas”, uma estatueta esculpida por Abel Lafleur ao longo de 30 centímetros, a partir de quatro quilos de ouro maciço. Estava ali a primeira taça de campeão do mundo, que durou até à conquista do tricampeonato canarinho em 1970. O navio “Conte Verde”, que passou no Rio de Janeiro para recolher o Brasil, atracou em Montevidéu a 5 de julho de 1930. Dois dias depois chegava a Jugoslávia. Ao cabo de dezasseis anos de lutas, Rimet sorria. O sonho de um Campeonato do Mundo vivia o primeiro dia do resto da sua vida.
A festa arrancou a 13 de julho com um França-México (4-1) na capital uruguaia. O gaulês Lucien Laurent arquivou o nome nos livros ao ser o primeiro a marcar um golo num Mundial. No dia seguinte, Roménia e Perú abriram outros registos relevantes na história do torneio. No Estádio Pocitos só estavam 300 adeptos. Nunca um jogo de Campeonato do Mundo teve uma assistência tão baixa e inferior à fasquia dos mil espectadores. A título de curiosidade, os números mais altos remontam ao “Maracanazo” de 1950 – 199.854 adeptos assistiram ao jogo que entregou o segundo troféu ao Uruguai.
A Roménia, cujos treinos eram orientados pelo próprio Rei Carol, derrotou o Perú por 3-1. Stanciu abriu a contagem logo aos 50 segundos e o jogo arrastou-se sem qualquer mexida até ao intervalo. No início da segunda parte, o capitão peruano Plácido Galindo empurrou o árbitro e foi tomar banho mais cedo. Era a primeira expulsão de sempre no grande palco do futebol mundial, ainda que feita de forma verbal. Naquela altura, o árbitro avisava os atletas e anotava as advertências na sua caderneta. Só nos anos setenta foram introduzidos os cartões amarelo e vermelho, para melhor compreensão das incidências do jogo. Até à data estão contabilizadas 21 repreensões verbais, 66 duplos amarelos e 87 expulsões diretas.
O torneio finalizou com a consagração da “celeste” sobre a eterna rival Argentina (4-2). Apesar de contar com o melhor marcador da prova, Guillermo Stábile (oito golos em quatro jogos), a “albiceleste” não resistiu ao poderio do futebol uruguaio, empurrado por 93 mil pessoas que lotaram o Centenário de Montevidéu. O país entrou em delírio com o primeiro título planetário, mas os argentinos, queixosos da violência dos adversários, também foram recebidos em festa. Ao que consta terá nascido aí a teoria das vitórias morais. Certo é que o futebol impunha-se na sociedade com métodos e costumes próprios. Dali em diante, o desporto mundial nunca mais foi o mesmo.
“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.
Artigo editado por Filipa Silva